segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Capítulo III - Cena VI - continuação

Eu esperava você me encontrar todos os dias no fim da tardinha. Você chegava sorrindo, como quem nada quer, como quem nada tem a perder. Você me arrastava para um bar na Lapa, para um restaurante em Copacabana, para um café no Centro, e eu ia sempre feliz acompanhando seus passos. Tornamo-nos amigos inseparáveis. Era bom ter você por perto, era bom ouvir você dizer que eu tinha talento para a música, que as minhas notas eram carregadas de sentimento. Eu me sentia nas nuvens. Você lia poemas para mim, versos que eu aprendi a amar saindo da sua boca e me enlouquecendo quando invadiam o meu ouvido. Eram os versos ou era a sua voz? Eu tremia. Senti o amor preencher o meu vazio sem deixar que você soubesse que eu delirava por você todas as noites, mergulhando em sonhos tão prazerosos que era o próprio pesadelo acordar. Você lia para mim os versos que mais tarde diria a ela, quando estivessem sozinhos em algum jantar íntimo à luz de velas. Você diria a ela mais tarde as palavras que eu julgava serem minhas, e você deixaria o seu hálito aquecer a orelha dela enquanto eu pensava em você na solidão da minha cama. Você sempre a amou, não é? Só eu não quis ver o quanto seus olhos brilhavam quando falava dela, e eu fingia que prestava atenção. Eu queria você para mim, não podia aceitar que o homem que eu amava só queria de mim uma conversa informal depois do trabalho. Homens não procuram mulheres para conversar, para serem amigos.

Jorge, homens não são amigos de mulheres...

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Capítulo III - Cena VI

Espreguiço-me na cama imensa, vazia. Já me acostumei a não ter ninguém ao meu lado quando acordo. Levanto-me para o dia. Pela janela posso dizer que será, para muitos, um lindo dia. O sol irá brilhar, as flores, os passarinhos, a vida em perfeita harmonia pela janela, mas não dentro de mim. Dentro de mim tudo é negro, um imenso manto negro sobre minhas alegrias. Não quero sair de casa, não quero ver ninguém incomodado com minhas lágrimas, mas não posso me dar ao luxo de permanecer trancada neste apartamento, preciso ver pessoas, conversar com alguém, uma amiga, uma colega, um desconhecido no elevador. Não tenho ânimo para as minhas aulas, não tenho vontade de trabalhar, não quero mesmo tocar o piano, nem ouvir sua melodia triste. Mas é preciso.

Olho atentamente para a imagem no espelho. Estou tão abatida, tão pálida, sem vida. Não me admira que Jorge esteja perdendo o interesse em mim, estou horrível demais, envelheci anos em meses; perdi a essência da felicidade, ganhei uma expressão amargurada e triste. Há ainda como mudar isso? Poderei recuperar o que me foi tomado? Há esperança para reconquistar o que eu tinha?

A esperança é o consolo dos tolos. Eu sou a maior das tolas. E não percebo isso por bem, mas por estar no limite da minha sanidade física e mental. Não aguento mais o gosto das minhas lágrimas na boca nem a dor que me devasta o peito como se fosse uma ferida mortal. A luz se apagou quando ele me deixou de lado e fez questão que eu sentisse a sua distância. E eu tentei de tudo para agarrá-lo, para não deixá-lo partir, mas meus esforços não valeram de nada. Eu mesma sinto que não me valeu de nada o sofrimento que me impus de forma tão imatura.

Que surpresa ver Jorge dormir na poltrona. Pensei que ele chegaria com o sol, mas me enganei. Ele dorme. Eu me aproximo devagar, pé após pé, como se fosse uma ladra pronta para levar o ouro.

Durma, meu querido, durma. É tão bonito quando dorme, sem as preocupações que o desnorteiam todas as noites. Mas o que você faz aí tendo uma cama tão confortável e quente? Por que dorme no desconforto se podia estar nos meus braços? É de mim que foge? É meu amor que sufoca você? Não entendo por que tem de ser assim, quando só o que eu queria era ter você para mim. Por quê? Por que você entrou na minha vida e me tomou toda a segurança que eu tinha? Aceitas uma taça de vinho com este homem encantado com teu talento ao piano; você me perguntou com o sorriso que eu amo. Como não aceitar beber do seu vinho e me embriagar em sua boca, Jorge? Eu quis tomá-lo em meus braços desde que meu olhar encontrou o seu. Eu quis ser sua no momento em que o vi se encantar com minha música. E quis chorar quando você se foi do mesmo jeito que surgiu, sem que eu nada pudesse fazer para afastá-lo de mim ou agarrá-lo ao meu peito arfante. Paixão à primeira vista! Eu não acreditava nisso até você me mostrar que eu estava errada, que sempre fui errada e meu acerto era você.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Capítulo III - Cena V

A luz do dia vem beijar minha face triste. A cama mais uma vez vazia. Não me recordo de vir para o quarto ontem à noite. Apaguei no sofá como a vela que ardeu por horas na escuridão e agora não tem o menor valor. Até quando vou suportar estar só quando não devia estar? Estou sofrendo, todos percebem o quanto a dor me dilacera a vida, menos ele. Jorge não percebe que estou definhando a cada dia, não percebe que minha flor está murchando, que o outono entra rasgando em mim e desfolha minha essência. Jamais escondi o quanto o amo, jamais lhe neguei o meu amor, mas não posso mais ser nula nesta relação doentia. O que sinto por ele não é saudável, nem para mim, tampouco para ele. Estamos nos matando em cada encontro, em cada ausência sentida. Cansei de esperar pelas voltas dos ponteiros, cansei de preparar o jantar para dois e comer sozinha, cansei de desejar o calor do seu abraço e me encolher de frio todas as noites.

Não estou bem. Faz muito tempo que não estou bem, mas agora o corpo dá mostras de que também não está. Sinto-me febril, desanimada, triste demais para enfrentar o dia, para aguentar a noite. Perco aos poucos a vontade de fazer o que me dá prazer, ou dava, porque hoje o único prazer que sinto em mim é quando Jorge finge me amar. O piano há muito foi esquecido. Não quero tocá-lo, não o abro, não dedilho em suas teclas a minha amargura... perdi-lhe o gosto e nego-lhe a paixão que traduzia em minha música uma vez alegre, hoje triste. Não toco mais, porque sei que causarei em mim um mal maior a tocar melancólicas notas. Nego-me Chopin, nego-me Albinoni, Bach, Mozart..., porque foi pela música que Jorge entrou em minha vida como uma marcante sonata. E eu me lembro como se fosse tão perto a distância do tempo. Seu sorriso brando, seus olhos em mim, como se eu fosse a única pessoa naquele salão de festas, penetraram-me com tamanha intensidade que meus dedos quase paralisaram. Apaixonei-me por ele no primeiro instante. Apaixonei-me pela paixão estampada em seu rosto ao me ver e ouvir tocar. Nessa noite eu disse a mim mesma que ele seria meu a qualquer custo, mas não imaginava que o preço pago fosse tão alto ao meu penar. Se soubesse o quanto sofreria para tê-lo talvez desistisse dos meus quereres, talvez me forçasse a não desejar. Iludi-me pela quimera... quis um sonho que não posso manter, embora tenha feito louca tentado. Não posso mais viver um amor desmedido em que a balança pende somente para um lado. Preciso mudar. Preciso me mudar.