domingo, 23 de janeiro de 2011

Capítulo III - Cena IV

Hoje eu queria vê-lo novamente. Queria olhar para o seus olhos, os mesmos olhos que despertaram meu coração, e dizer de pronto, direta e secamente que estou curada da doença de Jorge. Queria ficar de frente para ele, enquanto as palavras saem vomitadas da minha angústia infinda. Mas não posso realizar minha vontade íntima. Não há mais registro desse homem cruel, nem telefone nem endereço. Nada, absolutamente nada me leva de volta às suas palavras falsas de amor hipócrita. Às vezes penso em como ele está, é claro. Gostaria de saber se sua carreira como escritor avançara como ele sonhava e tecia os seus planos; se ainda continua trancado num escritório de leis abusando das estagiárias interesseiras; se continua amando a arte como me dizia amar. Mas, no fundo, e negarei a vida inteira, queria saber se ele ainda pensa em mim.

Mas que diabos, Cláudia! Você foi aplaudida pelo Municipal inteiro e se põe a pensar no malfeitor da sua desgraça! Ouço a voz do meu agente na cabeça como se ele estivesse aqui. João Miguel é meu amigo. Mais do que isso, irmão. Sei que ele me deseja, mas não posso, nem quero, dar-lhe chances de pensar que pode reter meu corpo febril e me entregar a ele como me entreguei a Jorge. Não sou mais dada a sentimentalidades incongruentes, sou coerente ao que penso. Minha vida é uma terrível farsa, escrita pelo pior autor. Esta sou eu, a mulher que sorri no camarim, mas que se embriaga e chora na solidão disforme da sua imensa e derradeira solidão intimista. O mundo é feito de quimeras, os sonhos de ilusões. Acordar é estar no pesadelo. Planos oníricos invadem a realidade quando o efeito do vinho se vai. Se isto é amor, o que sinto me devastar, juro, não quero amar nem a outrem nem a mim mesma. Quero somente a paz da nostalgia no sorriso inocente da criança que um dia fui e se perdeu numa noite fria, e nada mais.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Capítulo III - Cena III

A taça está vazia. O apartamento está vazio. O meu coração está vazio. A mulher quando ama entrega-se ao sentimento, entrega-se ao outro como se ele fosse a absolvição do pecado de ser mulher. Ela se doa por inteiro sem olhar ao que deixa para trás, para sua individualidade, para seu próprio ser. A mulher se dá e nada recebe além de falsas promessas, de juras risíveis como os amores do homem. Ser mulher é ser condenada ao desengano, é ser mutilada por dentro e ainda sorrir como se lhe fosse um grande favor sofrer por alguém que a usa para saciar sua fome da carne. Eu fui mulher, eu amei e padeci as desgraças de um amor. Mas eu era tola, eu era jovem quando ele me encontrou, quando me deu flores e me iludiu dizendo as palavras mais doces que alguém poderia dizer a uma criança ingênua. Eu devia ler mais poesia na minha meninice, eu deveria conhecer os versos de amor que escapavam da sua boca quando me fitava os olhos e os lábios suplicantes por um beijo. Mas não percebi. Eu não percebi que era conduzida a um mundo escuro em que a razão se apagava como fogo sem ar. Eu amei cegamente um cafajeste, um vil homem cujo caráter não existe. Eu me deixei levar pelo ritmo da sua voz melosa, pelo sotaque elegante, pelos olhos brilhantes de um encanto falso. O amor me deixou marcada pelo desgosto, por isso decidi não mais amar. Jorge foi tudo em minha vida, Jorge foi meu porto onde pensei ancorar a minha fragata danificada. Mas descobri que a segurança nunca existiu, descobri que nunca tive aquele que julgava ser meu.

Encho a taça, mas a vida continua vazia. E de pensar que um dia ela foi plena me causa dores atrozes na cabeça e na alma. Amei como menina, entregando-lhe não só a minha flor mas também todo o meu jardim. Fui a amante perfeita, a dama educada, a prostituta na cama, a pessoa exata para o seu sonho. Fui feliz. Não nego que a felicidade existiu entre nós e me fez sorrir por anos de alegria sem fim. Mas a alegria teve fim. Eu, que lhe daria o mundo, e pensei ter dado, recebi apenas a pior parte do mundo caótico em plena guerra de mutilados.

Mereço a desgraça? Mereço o inferno? Jamais pensei que chegaria ao trágico espetáculo que enceno à minha eterna decepção. Ser iludida, no fim das contas, fez com que eu percebesse que o ser humano é negro como as forças malignas que se escondem nas sombras de nós mesmos. A dor é lacerante.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Capítulo III - Cena II

Choro no escuro. Choro na solidão que me imponho como castigo aos meus males. Tudo é triste, porque não consigo encontrar mais a alegria que um dia tive em mim. O amor me deixou. Ou fui eu que o deixei ir? Quero o regresso a Lisboa, à minha terra triste e tão distante de mim. Podia voltar, podia embarcar no primeiro voo pela manhã e estar novamente nas ruas da minha cidade. Podia recomeçar de onde pensei ser o fim, podia abandonar este Brasil em brasas e resfriar o corpo no frio intenso da solidão lusitana. Mas não, não posso deixar para trás a vida que aqui tracei. Não posso enterrar mais mortos pelo meu caminho sem direção. Sinto falta do Rossio, dos gajos apressados, das raparigas enamoradas, sinto falta das minhas raízes arrancadas, porque já não tenho raízes, já não tenho lugar. Portugal é apenas uma saudosa lembrança desde que cruzei “o mar salgado” para me encontrar e me perder por cá. Faz tantos anos que parti, que disse adeus para minha irmã, que abracei minha mãe, que enterrei meu pai. Faz tanto tempo que Portugal já não é meu como eu também não sou de Portugal. Até meu sotaque se vai embora, desbota. Quase falo como os brasileiros, tenho consumido sua cultura multicolorida, tenho me apaixonado pela música, pelo teatro, pela literatura, pela mulher que nunca cruzei em Lisboa, Oeiras, Cascais, Sintra... mas vim a encontrar no Rio de Janeiro, na correria desenfreada dos passos apressados que sempre tem tempo para o banho de mar. Foi aqui que conheci Cláudia, foi aqui que amei Cláudia, foi aqui que perdi Cláudia. Quero voltar a Portugal, mas...

Se eu fosse um dia o teu olhar,

E tu as minhas mãos também,
se eu fosse um dia o respirar

E tu perfume de ninguém.
Se eu fosse um dia o teu olhar,
E tu as minhas mãos também,
se eu fosse um dia o respirar
E tu perfume de ninguém.

Não há mais o que me dizer. Só restam as lágrimas atravessando a noite. O cigarro me acompanha a loucura, valsando solitária pelo ar das minhas alucinações. Ainda estou bêbado, porque a cabeça gira num vendaval assustador. Torno a me sentar. Estou tonto, estou cansado, estou desesperado pela paz que me falta. Encolho-me na poltrona como se ela fosse a velha mãe a me acolher. O sono chega com força colossal a pesar as minhas pálpebras para baixo. Caem as cortinas do meu espetáculo, a cena tem o seu fim próximo.

***
Se eu fosse um dia o teu olhar, Pedro Abrunhosa - Palco, 2003