terça-feira, 26 de julho de 2011

Capítulo V - cena 6

Vazia. A sala vazia, mergulhada num silêncio absurdo. Nada. Nenhum barulho, nenhum som, nenhuma música, nenhuma voz, nenhum grito, nenhum sussurro, apenas o silêncio da tua ausência se espalha pelas paredes frias e me cerca como um exército bárbaro pronto para me fazer em pedaços. Abro a janela e deixo o som das ruas invadir a minha loucura. Nada disfarça a tua falta. Não há som que substitua sua respiração breve, nada serve para me enternecer como tua voz suave, nada mais existe no meu delírio a não ser tua sonoridade agora muda em mim.

Tudo agora é um mergulho em trevas medonhas. A minha vida entrou na caverna escura e desconhecida. Eu caminho na escuridão atrás de ti, Luciana. Caminho desvairado como um caminhante que erra pelas trilhas ermas do desengano. Eu, que em outros tempos não te via, agora te vejo em todos os lugares que não estás. Isto é o que dizem dar valor quando se perde o que não se devia perder? Isto é descobrir que se ama alguém quando não há mais alguém para amar?

"A gente precisa conversar, Jorge”, tu me disseste, pelo telefone, há alguns dias. Palavras mágicas que expandem o significado e são entendidas com muita facilidade. Não há a necessidade de se ter essa conversa, já sabemos nós o que essas suas palavras querem dizer, não há pessoa no mundo que não saiba que tudo chegou ao fim quando proferimos a palavra “conversa”. Ainda não conversamos, mas já sabemos que eu e ti não somos mais um nós. Cada um agora segue seu caminho sem o outro para guiar pelas tortuosas vias que os passos arrastam. As pegadas se afastam uma das outras, e ninguém carrega o outro no colo. Não são as famosas pegadas na areia, as nossas passadas foram dadas na lama, assim sendo, encobertas pela terra negra e molenga que nos traga a cada pisada. Malditas escolhas as nossas. Maldita sejas tu por me amar; maldito seja eu por não ter dado o amor que eu negava em meu peito. Se um dia eu acreditei que só estava contigo para saciar a minha fome animal, percebo que mais do que a ti, eu me enganava, a viver na mentira que minha mente hipócrita criara.

Sinto a tua falta. É duro assumir que sinto a tua falta, mas — droga — eu sinto a tua falta, Luciana. Gostaria que estivesses aqui comigo, compartilhando da minha comida, protegida pelo meu teto, aquecida pelo meu corpo. Mas não estás, não é mesmo? Percebeste em tempo que o barco fazia água e buscaste o teu salva-vidas a fim de te salvares ilesa da corrente que vinha assustadora como uma onda gigantesca se aproximando da costa. Eu tenho medo. O que será de mim agora que foste embora? Voltarás um dia? Teremos essa conversa ou as entrelinhas já nos disseram tudo o que as palavras negam dizer? Silêncio... só ouço o som do álcool enchendo o copo. Mais uma dose de sonhos antes de o pesadelo voltar para mim e sorrir sarcástico, repleto de ironia.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Capítulo V - Cena 5b

O sol no rosto me fez acordar. Não sei se foi a leitura do poema ou se foi a comunhão espiritual com Cristo, mas acordei bem melhor do que quando me espreitei pelo corredor cheia de receios para me perder, ou quem sabe me encontrar nas páginas amareladas de um Gregório de Matos.

Pela janela o dia é azul, aqui parece que todos os dias são azuis. É bonito, é tranquilo, um refúgio perfeito para meus problemas, para meus tormentos, para minha dor e meu medo. Não é porque a grama é verde e a brisa refrescante que não temo as pragas e as grandes tempestades que destroem tudo quando passam. Mas acredito que já tenha vivido todas as tempestades, ou melhor, calamidades que a vida poderia me fazer passar. Ainda estou em pedaços, e eu mesma preciso me juntar. Não posso depender de ninguém, não posso mais ser a menina incapaz, a mulher fraca que fizeram de boba por tanto tempo. Agora é hora de pegar a minha vida e guiá-la por mim mesma. Se não for bom para mim, não farei pensando em agradar outra pessoa que jamais me faria o mesmo. Eu me tornarei uma pessoa ruim por isso? Quem se importa? Sou sempre eu que choro sozinha no fim das contas.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Capítulo V - Cena 5

Encantada com a sala do meu avô, com as sensações pueris que me invadiram a alma, quase me esqueço do que vim fazer no meio da noite, como uma ladra furtiva esgueirando-se pela casa. A grande estante me fascina os olhos. Tantos livros ali repousados, tantas histórias guardadas, tantas lágrimas dispostas em versos e prosas. Jorge amaria este lugar. Tenho certeza de que ficaria horas, quem sabe dias perdido entre os livros do meu querido mestre literário. Mas ele nunca quis deixar o Rio, nunca quis passar alguns dias no campo, nunca quis conhecer minha família, meu mundo, minha vida. Será que ele realmente me conheceu? O que Jorge sabe de mim?

A busca é rápida. O volume que procuro logo está em minhas mãos. O tecido da capa deslizando em meus dedos, as letras douradas já desgastadas pelo tempo, o cheiro do papel envelhecido, tudo me encanta. O coração se enche, mas não de amor ao homem, mas de amor puro e bondoso. Tenho vontade de chorar. Eu preciso da prece que pulula em minha cabeça. Queria ouvir a voz do meu avô recitando o poema, mas ele dorme, ele é velho, já quase não vê... mas sabe de cor os versos que procuro. Sento numa poltrona de couro de frente à janela. Lá fora a lua altiva joga seu brilho na grama. É tão linda, tão distante, tão solitária, a pobre amante. Abro o livro. Leio com a voz engasgada e as lágrimas que teimo em conter, enquanto busco a Cristo nos versos de Gregório.

A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados
De tanto sangue e lágrimas abertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me,
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, p'ra chamar-me

A vós, lado patente, quero unir-me,
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Capítulo V - Cena 4

Levanto apressada da cama. A camisola de algodão, tão diferente das ousadas sedas que me contornavam as curvas para lhe fazer delirar, se estende até o chão como uma túnica sacra. Lentamente vou à porta do quarto, pouso a mão na fria maçaneta, girando-a devagar. No silêncio do campo os ruídos da dobradiça são sussurros de melancolia. Não quero fazer barulho, não quero acordar meus avós, pobres almas ainda apaixonadas, que sem o fogo ardente que me consome, vivem as alegrias do companheirismo e a felicidade harmônica de quem teve uma vida inteira de satisfação. Caminho pelo longo corredor escuro. À frente, a lua entra por uma janela e guia meus passos vacilantes pelas trevas de mim. A cada porta que fica para trás meu coração dispara. E agora penso em quão tola sou. Medo de quê? Qual dos monstros da minha loucura aparecerá por trás dos meus ombros e me perseguirá com sede dos meus tormentos. Estou enlouquecendo. Rogo a Deus para que me proteja das minhas alucinações violentas. Fico mais calma quando finalmente abro a porta do velho escritório do meu avô. Uma caminhada interminável em alguns metros. Acendo a fraca luz e entro afoita.

Aqui tudo é um mergulho no tempo. Eu gosto. Gosto do cheiro da umidade, gosto do amarelado da lâmpada, gosto da sensação de voltar à infância. A cortina pesada está fechada, encobrindo a janela. Abro-a com delicadeza. Lá fora tudo transmite paz e tranquilidade. Por que deixei a fazenda? Por que deixei Minas? Por que deixei minha paz? Quando jovens não damos o exato valor àquilo que temos. Eu queria mais, eu queria o mundo... eu quis tanto, e não tive nada. Iludida pelas grandes possibilidades de um Rio de Janeiro que não existiu para mim. O piano não me levou a nenhum lugar, apenas ao mágico mundo dos meus sonhos tolos. Tocar era meu prazer, minha forma de gritar aos homens a sensibilidade da mulher, tocar era tudo o que me fazia feliz até conhecer a infelicidade de amar. Quero de volta a minha alegria triste; quero a minha música da alma enternecendo os corações aflitos, quero encontrar o que perdi em mim. Eu preciso. Preciso me encontrar e não há lugar melhor do que voltar aonde tudo começou. Ao velho piano de minha doce avó, aos livros do meu avô, aos beijos de minha mãe, aos abraços de meu pai. Preciso encontrar a menina sonhadora que um dia arrumou as malas e decidiu tentar carreira numa cidade estranha. Ela não está morta, apenas perdida num canto escuro da minha história.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Capítulo V - Cena 3

Tranquila. Tenho que ficar tranquila. Meu coração está pequeno, apertado, sofrido, mas tenho que contê-lo, preciso dominar o meu mal, necessito dar a mim um pouco de paz, embora sofra. “Todo sofrimento passa, minha filha”, a voz suave da minha avó se repete em minha cabeça para me dar um pouco de alívio. Eu tento, juro. Tento me reconfortar nas lembranças de infância, no cheiro da inocência dos meus tempos de alegria... eu tento.

Agora, deitada na cama, olho para o teto, vejo as formas que as sombras desenham, as ranhuras que formam desenhos abstratos, mas se tornam claros na minha cabeça como telas renascentistas. Vejo a vida que sonhei para mim, quando, aqui mesmo, deitada nesta mesma cama, neste mesmo quarto, inventei uma história que nunca aconteceu. Quando se é menina fantasiamos demais, acreditamos nos contos de fadas. Eu era a princesa, eu aguardava meu príncipe encantado vir de longe me salvar dos meus pesadelos, dar-me um beijo e me pedir em casamento. Eu era a princesa de um sonho infantil que a realidade desconfigurou. Os sonhos, os meus sonhos, foram todos destroçados. O que me restou? Claro, Luciana, a realidade foi o que restou. Ingenuidade demais querer viver de ilusões infantis. Ingenuidade mesmo é acreditar que a vida será um sonho feliz. E não é.

Faz alguns dias que fugi do meu mundo. Faz alguns dias que peguei minhas malas e fechei a porta atrás de mim com a vontade de nunca mais voltar. Eu não quero voltar, mas meu coração pensa diferente. Coração não pensa, Luciana. Não responsabilize quem não tem culpa pelas suas vontades. Eu quero chorar, mas as lágrimas já escorreram demais. Deixei o apartamento, deixei Jorge, deixei o meu amor... mas ainda não deixei a minha dignidade. Não poderia deixá-la se perder como eu estava me perdendo. Era preciso agir, deixar a comodidade para trás, arregaçar as mangas e mudar. Dei o primeiro passo, o mais difícil dos passos, o que me levou para longe de quem eu queria estar sempre perto, atada, unida e firme como no poema de Gregório.

sábado, 21 de maio de 2011

Capítulo V - Cena 2

Só. A vida fez de mim um homem só, ou eu fiz da solidão a minha vida. Um longo vazio no revés da melancolia. Não há mais ninguém aqui, somente fantasmas de agonia vagando pelos corredores da minha memória, com seus gemidos assombrosos. Onde estão as vozes que tanto quis que se calassem? Onde estão os passos que por tantas vezes me incomodavam? Onde está meu mundo neste caos interminável em que os sonhos tornaram-se a tormenta do abandono.

Envelheci de ontem para hoje. Tornei-me amargo. Não me restou sombra de quem um dia fui e jamais serei novamente. Acredito agora que eu sou o fantasma de meu mundo. Não foram aqueles que me rodeavam que desceram à sepultura e ficaram volitando pela casa a fim de me molestarem a memória, fui eu que larguei o corpo em algum lugar sombrio e me meti num lodoso pântano de sofrimento.

Quis muito e nada mais tenho. De tanto querer, tudo perdi. E era o sorriso dela que me mantinha e fui incapaz de perceber. Não lhe dei valor, embebido na loucura. Não lhe dei amor, aprisionado em quimeras. E agora que tudo acabou? Por que só damos valor aos outros quando os perdemos? Qual a medida da minha insanidade descabida?

Olho o que restou dela no apartamento. Percorro com os olhos baços as fotos esquecidas. Seu sorriso de menina... seu rosto de mulher. Choro. Em silêncio as lágrimas me descem pelo rosto, molham minha barba mal feita, perdem-se na tristeza em que se afogou minha ternura. Luciana foi embora. Partiu sem dizer adeus, sem um último beijo, sem um apertado abraço. Ela se foi para nunca mais voltar. Foi porque sou tolo, foi porque eu não soube amar.

Na fumaça do cigarro, vejo formar-se o rosto dela. O mesmo rosto que me esperava voltar, mesmo a saber que meu regresso não era verdadeiro. Ela sempre soube que eu não estava por inteiro em seus braços. Você está distante; ela dizia. Eu meneava a cabeça e mentia. Hoje é por ela que sofro. É por ela que me condeno e, infelizmente, nunca saberá que lhe tive sentimentos.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Capítulo V - Cena I

A noite é um delírio insano. O calor me enlouquece. A gaveta aberta, as lembranças espalhadas pelo chão. Velhas fotografias, cartas, uma vida trancada em amargas ilusões. Sorrisos amarelados e olhos sem brilho na fugacidade do tempo. As imagens estão gastas, sem cor, sem alma. O amor faz isso conosco, muitas vezes maltrata. Não, não, maltrata na maioria horripilante das vezes. Nunca pensei que choraria. Meu pai havia me ensinado que homens não choram, mas ele estava errado. Estava errado com seu olhar amargo de quem a vida impingiu fortes mágoas. Meu pai à mesa, com seu rosto rude e lábios curvados para baixo, dizia-me num tom severo de quem conhece a vida: homem não chora, Jorge, engole a lágrima sem fazer careta. O homem deve ser forte e não demonstrar as sentimentalidades para quem quer que seja. Somos de pedra, duros como as fortalezas de São Jorge. Mulher nenhuma merece o mar em nossos olhos salgados.

Homem não chora, dizia meu pai à mesa, mas eu choro. E choro às sentimentalidades tão condenadas. Eu choro ao amor debandado, humilhado, esquecido. Minhas lágrimas se juntam ao mar, não de Portugal, mas da Guanabara e vão se juntar ao Tejo, atravessando o atlântico, nesta dor além-mar.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

CApítulo IV - Cena V


Hoje fui à Academia. Não podia abandonar o que na tristeza me fia um pouco de alegria. Ao piano sentei-me com pesar e senti o marfim das teclas folhear meus dedos finos, magros. Uma necessidade pungente de tocar me dominava, mas eu não queria tocar, não queria derramar minhas lágrimas, mas derramei. Toquei com a emoção que antes era contida, debulhei-me como criança perdida, e isso me fez um bem que não imaginava ter.

Mais calma, tomei uma decisão.

sábado, 30 de abril de 2011

Capítulo IV - Cena IV

Noites atravessei em prantos. Eu chorava por ele, pela falta dele, pelo ódio dele, pelo amor dele. Amor e ódio, duas linhas tênues que se cruzam em determinada parte do caminho das quimeras. Definhei como uma paciente terminal apenas esperando a morte chegar. Mas fui eu que lhe pus para fora de mim. Fui eu que lhe neguei o perdão. Mas não poderia ser diferente. Eu não poderia deixar que ele me fizesse de tola eternamente como há muito fazia. Era preciso ser forte e aguentar a dor brutal que me punha inconsciente na cama.

Jorge entrou no elevador sem olhar para trás. Eu caí sobre os joelhos em pânico. A dor pungente me contraía o estômago, a vista turva, banhada de lágrimas, banhada das agonias da loucura. Eu gritei como se me arrancassem de mim mesma numa explosão catastrófica de dor e de mágoa. Eu gritei porque queria que ele me ouvisse, mas é claro que não me ouviu, ou se ouviu, fingiu não ouvir.

A noite foi um pesadelo acordada. A primeira noite sem o homem que eu pensava ser o meu único amor foi o viver no inferno. Não havia mais ninguém para cuidar de mim, ninguém para me beijar o rosto antes de dormir, ninguém para me cobrir no frio, ninguém para me amar... E foi então que eu quis morrer.

domingo, 24 de abril de 2011

Capítulo IV - Cena III

Tens certeza disso? Queres que eu vá embora? Foram as últimas palavras do nosso fim. Jorge me perguntava à porta, eu não tinha coragem de fitar seus olhos negros. Num gesto, afirmei com a cabeça e disse com a voz entrecortada de amargura: agora é tudo o que eu quero. E ele foi. Atravessou o umbral sem se despedir, sem pedir para ficar, sem dizer que voltava, sem nada. Apenas chegou ao corredor num passo vacilante e chamou o elevador.

Vazia, eu olhava pela porta ainda aberta. Algo em mim o esperava de volta — coisa louca — eu o expulsava da minha vida e tinha o desejo de que insistisse para ficar. Mas Jorge sempre me surpreendia, eu nunca poderia esperar dele a certeza, quando todo ele era o improviso. Jorge não voltou, não argumentou, não gritou, não brigou. O silêncio foi um golpe fatal à minha falsa superioridade racional.

Era isso o que eu queria de verdade? Não poderia perdoá-lo pelas inúmeras falhas? O coração ferido acreditava numa mudança, mas a mente fria sempre soube que não se muda o homem. Ele faria novamente. Ao menor descuido meu, ele me trairia como era de costume. E eu, que sempre pensei na sua satisfação, amargaria maiores decepções, transformando o amor de ontem no ódio de hoje. Não mudou muito, entretanto. O que sinto por ele não é algo saudável ou digno de caixinha de lembranças.

Se fomos felizes um dia? Sim, fomos felizes, pelo menos eu penso que sim. Mas a felicidade de um instante não supera a tristeza absoluta que se instalou em mim desde que soube de outros braços em seu corpo, desde que perdemos aos poucos a centelha do amor que nos consumia como corpos ardentes. A súbita lembrança me esfacela o peito. Queria esquecê-lo, transformá-lo numa simples e vaga recordação do passado mutilado e distante, mas esse homem de fala mansa e sorriso pleno não se apaga em mim, embora eu me esforce para tal. Maldito! Ele ou meu coração? Somos todos malditos neste campo de mentiras e ilusões. O amor é um veneno, Jorge a serpente que jorrou em mim a mácula da decepção.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Capítulo IV - Cena II

Por que fiquei tanto tempo ao lado de Luciana? Por que mantive as ilusões que ela criara? Nós nunca seremos a família feliz, nunca teremos filhos, jamais envelheceremos juntos. Contentei-me com para não sofrer a perda do verdadeiro amor. Terei perdão na entrada do Paraíso? Certamente não terei nem o meu perdão. Não me sinto bem por tratá-la friamente, abusando dos seus sentimentos para acalentar os meus prazeres. Mas alguma coisa mudou. Antes eu a iludia, e tinha consciência do que fazia, mas, com o tempo, perdi a noção exata do que era ilusório e do que era real. Não fosse por Cláudia, Luciana seria uma mulher muito amada. Ela merece ser amada pelo amor que me dispensa, e não sei retribuir. Iludindo-a, iludo a mim nessa farsa em que vivemos. Gosto dela, não nego a verdade, mas não como ela merece. Gostaria de recomeçar. O mais certo é que não a queria como amiga e confidente das horas impróprias. Se eu não a conhecesse, poupar-lhe-ia um sofrer desumano. Mas se eu não a conhecesse, jamais ouviria o som do seu coração vazando pelas teclas do piano. Jamais teria me arrepiado com a música triste que ela emana. Luciana sempre foi um tanto quanto triste, e isso não é minha culpa, é próprio dela. Eu somente a libertei em maior intensidade. E ela é tão boa comigo. Sempre foi.

No dia seguinte à noite em que me encantei com Luciana adormecida no sofá, senti meu coração estremecer quando não a vi na cama. Mesmo com dores atrozes no corpo, acordei com vontade de Luciana, não de Cláudia. Mas ela não estava na cama, não estava no quarto, não estava em lugar nenhum de nosso mundo privado. Pela primeira vez pensei em como seria perdê-la. Não gostei. Onde ela estava? Liguei para o celular com palpitações nervosas. Ela não me atendeu. E ela sempre me atendia, independente do que estivesse a fazer. Isso me impulsionou o medo, um medo que eu desconhecia existir em mim. Aquilo doeu. E era o princípio de Lucina? Talvez.

Ela não está novamente. Anda a vagar por algum lugar desta imensa cidade, e eu não sei onde ela caminha, onde ela passa o dia, às vezes as noites. Preocupo-me, óbvio. Mas o receio maior é de que ela esteja com outro, a dar a outrem o que tanto dedicou a mim e não fui homem o suficiente para entender. Peno... sofro de ciúmes. E diferente dela, não calo minha angústia. Brigamos muito... e não gosto de brigas.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Capítulo IV - Cena I

Mais uma noite mal dormida. Meu pescoço dói como se o tivessem apertado, como se eu fosse estrangulado. Mas o que é a dor do corpo quando o que incomoda de verdade é a interna? Às vezes penso em como machuco Luciana. Vê-la indefesa na cama, como uma criança encolhida mexeu comigo como nunca. Sou um monstro. Assim vejo a mim quando lanço os olhos no espelho. Parece-lhe que não tenho sentimentos, que sou cruel apenas por um prazer doentio de lhe fazer sofrer. Mas não é assim que sou, este não sou eu. De que adianta convencer-me disso? Ela não me pode ouvir os pensamentos.

Agora me vem a lembrança feliz de quando a vi pela primeira vez. Estava tão linda, tocava exuberante seu piano de calda numa festa que mal me recordo. Como recordar de outra coisa depois de ver Luciana tocar o piano. Ela fascinou-me de imediato. E quis tê-la naquele mesmo instante em minha cama. Quis entrar em seu corpo e sublimar meu egoísmo em mais uma conquista sem sentimentalidades. Queria apenas seu sexo, retorcer-me de gozo em seu corpo formoso.

Ainda vivia com Cláudia quando Luciana cruzou meu caminho. Mas não foi por ela que perdi, ou joguei fora, o dilacerante amor. Foram as outras que vieram antes e depois da minha pianista sorumbática. Não nego, não posso negar, o quanto mesquinho eu fui, o quanto me faltou o caráter nos tempos idos. Foi preciso perder o ser que me fazia viver para que eu percebesse a sua derradeira falta. Como pude ser tão tolo por imaginar que minhas falhas jamais seriam descobertas.

Depois que a amada se foi, busquei nos braços da outra o alívio às minhas amarguras. Que culpa tenho eu, se ela me ofereceu mais que o ombro amigo? Certo, eu me aproveitei da minha própria melancolia para trazê-la mais para perto, para abrir as portas do meu apartamento e despi-la em meu quarto. Fiz parecer que aquilo era algo natural, mas sempre foi minha intenção passar a noite entre seus braços; nunca me neguei a verdade daquele instante em que seus seios nus tocaram meu peito e as peles se aqueceram no calor da paixão. Luciana seria só mais uma conquista como foram todas as outras, mas com ela foi diferente. Eu a quis de novo. Eu gostava de ter aquela menina sob minha devassidão disfarçada de amor. Era carência... era a carência que me levava a ela como um desesperado corre para viver. Dei-lhe corda como se faz a um brinquedo. Nunca me dei por satisfeito. Eu a quis mais, talvez esse tenha sido meu erro. Num momento de que não posso precisar, deixei que ela se apaixonasse por mim. Eu a deixei deitar no caixão e esperar pela morte.

domingo, 20 de março de 2011

Capítulo III - Cena VIII

É tarde. Dormi demais, dormi mais do que poderia. O sol está alto e me queima o rosto. Nem adianta correr, o trabalho foi perdido, mais um dia jogado fora e logo vão acabar também por me jogar fora da empresa. Que importa? Não tenho paciência para processos, não tenho cabeça para nada além das minhas dores. Sou um canalha sentimental, assim me define o amigo Lisandro. Um canalha sentimental... Não discordo da alcunha que me dão como piada, mas não concordo de todo. Como homem, errei no trato às mulheres que amei, eu errei por ter no sexo febril a razão da vida, errei por amar demais, errei por amar de menos... foram tantos erros, quase não vejo acertos.

Dormi mal. A poltrona é uma tortura às minhas costas. Não sou mais tão jovem como antes, meu corpo já não é o mesmo de outros tempos. Estou a envelhecer. E o que tenho nesta vida? O que construí? O status social, o dinheiro, a pouca fama não são suficientes para estampar em meu rosto um sorriso verdadeiro. O que é verdadeiro em minha vida?

A cama arrumada, o quarto vazio. Luciana não está em casa. Deve ter ido ao trabalho. O cheiro dela ainda está no ar, um cheiro doce, perfume suave e prazeroso. Como posso não amá-la se ela é todo amor? Que tipo de homem sou eu? Um canalha sentimental, as palavras do amigo ecoam em minha cabeça dolorida.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Capítulo III - Cena VII

Desculpe-me, Jorge, por amar você; por me consumir na esperança cega de que um dia você possa me amar, não como o amo, pois sei que é muito, mas, ao menos, um pouco para que eu não me sinta assim, como agora me sinto, entregue ao abandono, à solidão irremediável que me mata a calma quando você foge de mim na madrugada, e eu finjo não notar.

Temos que dar um fim a esta tormenta sem sentido que é nosso caso. Não podemos mais viver no maldito castelo de areia junto ao mar, não podemos nos alimentar de nuvens e dormir no ar...eu já não quero amar. Não quero, meu querido amante, ser amarga, não ter o prazer do sentir. Não! Eu sou toda sentimento, toda euforia e emoção por você. E o que você é para mim? Você percebe que tem me tirado isso também? Não, tenho a certeza exata de que não percebe, ou finge não perceber.

Gosto mesmo de ver você dormir. Você fica ainda mais bonito quando tem a expressão serena estampada no rosto adormecido. Parece que jogou fora, se livrou dos problemas de uma forma muito simples. Admiro-o por isso. Fico a imaginar o que você sonha... Será comigo? Tolice, sei bem que não estaria com esse sorriso tênue lhe decorando a face se eu fosse o seu sonho.

Resolvi, meu doce amado, dar o que você tanto quer, mas não tem coragem para me dizer: irei me afastar de você mesmo que doa, e doerá como nunca senti. Não lhe darei a liberdade ainda, mas o deixarei livre das amarras que o prendem a mim.

Sinto muito por amar você... Eu beijo sua face com delicadeza. O gosto da sua pele, os pelos da barba, o suor na minha boca, tudo é um tiro de agonia, um calor que me sobe pelas pernas e explode nos lábios sedentos dos seus lábios. Quase não me detenho. Tenho vontade de arrancá-lo dos sonhos, trazendo-o de volta à realidade dos meus carinhos; tomá-lo para mim como se eu pudesse tê-lo; desnudá-lo das suas contradições; devorá-lo como antropófaga para tê-lo em mim mais do que já tenho. Venha, meu amor, conhecer as estrelas! Elevarei seu corpo em minha ilusão de menina. Eu desejo, amo... ardo sozinha, sempre sozinha... Por que não o acordo? Por que não faço a sua paixão ser minha? Tenho medo de aborrecê-lo, tenho medo da rejeição. Mas como posso temer isso, se rejeitada sou todos os dias?

Deixo-o no sofá. É cedo ainda. Ele não irá acordar. Preciso sair, preciso pensar, preciso do ar que me falta quando ele me deixa. Vou ao largo, um passeio pela orla... qualquer lugar onde ele não está... mas não há lugar onde Jorge não esteja. Ele está em mim, nas minhas coisas, nas minhas roupas... está na cidade, na praia, nas praças, nos campos... está em tudo dentro de mim, tomou minhas memórias, devorou minhas lembranças... tomou-me de mim.

Preciso do som, preciso da música, preciso tocar... preciso me perder para, quem sabe, me encontrar.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Capítulo III - Cena VI - continuação

Eu esperava você me encontrar todos os dias no fim da tardinha. Você chegava sorrindo, como quem nada quer, como quem nada tem a perder. Você me arrastava para um bar na Lapa, para um restaurante em Copacabana, para um café no Centro, e eu ia sempre feliz acompanhando seus passos. Tornamo-nos amigos inseparáveis. Era bom ter você por perto, era bom ouvir você dizer que eu tinha talento para a música, que as minhas notas eram carregadas de sentimento. Eu me sentia nas nuvens. Você lia poemas para mim, versos que eu aprendi a amar saindo da sua boca e me enlouquecendo quando invadiam o meu ouvido. Eram os versos ou era a sua voz? Eu tremia. Senti o amor preencher o meu vazio sem deixar que você soubesse que eu delirava por você todas as noites, mergulhando em sonhos tão prazerosos que era o próprio pesadelo acordar. Você lia para mim os versos que mais tarde diria a ela, quando estivessem sozinhos em algum jantar íntimo à luz de velas. Você diria a ela mais tarde as palavras que eu julgava serem minhas, e você deixaria o seu hálito aquecer a orelha dela enquanto eu pensava em você na solidão da minha cama. Você sempre a amou, não é? Só eu não quis ver o quanto seus olhos brilhavam quando falava dela, e eu fingia que prestava atenção. Eu queria você para mim, não podia aceitar que o homem que eu amava só queria de mim uma conversa informal depois do trabalho. Homens não procuram mulheres para conversar, para serem amigos.

Jorge, homens não são amigos de mulheres...

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Capítulo III - Cena VI

Espreguiço-me na cama imensa, vazia. Já me acostumei a não ter ninguém ao meu lado quando acordo. Levanto-me para o dia. Pela janela posso dizer que será, para muitos, um lindo dia. O sol irá brilhar, as flores, os passarinhos, a vida em perfeita harmonia pela janela, mas não dentro de mim. Dentro de mim tudo é negro, um imenso manto negro sobre minhas alegrias. Não quero sair de casa, não quero ver ninguém incomodado com minhas lágrimas, mas não posso me dar ao luxo de permanecer trancada neste apartamento, preciso ver pessoas, conversar com alguém, uma amiga, uma colega, um desconhecido no elevador. Não tenho ânimo para as minhas aulas, não tenho vontade de trabalhar, não quero mesmo tocar o piano, nem ouvir sua melodia triste. Mas é preciso.

Olho atentamente para a imagem no espelho. Estou tão abatida, tão pálida, sem vida. Não me admira que Jorge esteja perdendo o interesse em mim, estou horrível demais, envelheci anos em meses; perdi a essência da felicidade, ganhei uma expressão amargurada e triste. Há ainda como mudar isso? Poderei recuperar o que me foi tomado? Há esperança para reconquistar o que eu tinha?

A esperança é o consolo dos tolos. Eu sou a maior das tolas. E não percebo isso por bem, mas por estar no limite da minha sanidade física e mental. Não aguento mais o gosto das minhas lágrimas na boca nem a dor que me devasta o peito como se fosse uma ferida mortal. A luz se apagou quando ele me deixou de lado e fez questão que eu sentisse a sua distância. E eu tentei de tudo para agarrá-lo, para não deixá-lo partir, mas meus esforços não valeram de nada. Eu mesma sinto que não me valeu de nada o sofrimento que me impus de forma tão imatura.

Que surpresa ver Jorge dormir na poltrona. Pensei que ele chegaria com o sol, mas me enganei. Ele dorme. Eu me aproximo devagar, pé após pé, como se fosse uma ladra pronta para levar o ouro.

Durma, meu querido, durma. É tão bonito quando dorme, sem as preocupações que o desnorteiam todas as noites. Mas o que você faz aí tendo uma cama tão confortável e quente? Por que dorme no desconforto se podia estar nos meus braços? É de mim que foge? É meu amor que sufoca você? Não entendo por que tem de ser assim, quando só o que eu queria era ter você para mim. Por quê? Por que você entrou na minha vida e me tomou toda a segurança que eu tinha? Aceitas uma taça de vinho com este homem encantado com teu talento ao piano; você me perguntou com o sorriso que eu amo. Como não aceitar beber do seu vinho e me embriagar em sua boca, Jorge? Eu quis tomá-lo em meus braços desde que meu olhar encontrou o seu. Eu quis ser sua no momento em que o vi se encantar com minha música. E quis chorar quando você se foi do mesmo jeito que surgiu, sem que eu nada pudesse fazer para afastá-lo de mim ou agarrá-lo ao meu peito arfante. Paixão à primeira vista! Eu não acreditava nisso até você me mostrar que eu estava errada, que sempre fui errada e meu acerto era você.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Capítulo III - Cena V

A luz do dia vem beijar minha face triste. A cama mais uma vez vazia. Não me recordo de vir para o quarto ontem à noite. Apaguei no sofá como a vela que ardeu por horas na escuridão e agora não tem o menor valor. Até quando vou suportar estar só quando não devia estar? Estou sofrendo, todos percebem o quanto a dor me dilacera a vida, menos ele. Jorge não percebe que estou definhando a cada dia, não percebe que minha flor está murchando, que o outono entra rasgando em mim e desfolha minha essência. Jamais escondi o quanto o amo, jamais lhe neguei o meu amor, mas não posso mais ser nula nesta relação doentia. O que sinto por ele não é saudável, nem para mim, tampouco para ele. Estamos nos matando em cada encontro, em cada ausência sentida. Cansei de esperar pelas voltas dos ponteiros, cansei de preparar o jantar para dois e comer sozinha, cansei de desejar o calor do seu abraço e me encolher de frio todas as noites.

Não estou bem. Faz muito tempo que não estou bem, mas agora o corpo dá mostras de que também não está. Sinto-me febril, desanimada, triste demais para enfrentar o dia, para aguentar a noite. Perco aos poucos a vontade de fazer o que me dá prazer, ou dava, porque hoje o único prazer que sinto em mim é quando Jorge finge me amar. O piano há muito foi esquecido. Não quero tocá-lo, não o abro, não dedilho em suas teclas a minha amargura... perdi-lhe o gosto e nego-lhe a paixão que traduzia em minha música uma vez alegre, hoje triste. Não toco mais, porque sei que causarei em mim um mal maior a tocar melancólicas notas. Nego-me Chopin, nego-me Albinoni, Bach, Mozart..., porque foi pela música que Jorge entrou em minha vida como uma marcante sonata. E eu me lembro como se fosse tão perto a distância do tempo. Seu sorriso brando, seus olhos em mim, como se eu fosse a única pessoa naquele salão de festas, penetraram-me com tamanha intensidade que meus dedos quase paralisaram. Apaixonei-me por ele no primeiro instante. Apaixonei-me pela paixão estampada em seu rosto ao me ver e ouvir tocar. Nessa noite eu disse a mim mesma que ele seria meu a qualquer custo, mas não imaginava que o preço pago fosse tão alto ao meu penar. Se soubesse o quanto sofreria para tê-lo talvez desistisse dos meus quereres, talvez me forçasse a não desejar. Iludi-me pela quimera... quis um sonho que não posso manter, embora tenha feito louca tentado. Não posso mais viver um amor desmedido em que a balança pende somente para um lado. Preciso mudar. Preciso me mudar.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Capítulo III - Cena IV

Hoje eu queria vê-lo novamente. Queria olhar para o seus olhos, os mesmos olhos que despertaram meu coração, e dizer de pronto, direta e secamente que estou curada da doença de Jorge. Queria ficar de frente para ele, enquanto as palavras saem vomitadas da minha angústia infinda. Mas não posso realizar minha vontade íntima. Não há mais registro desse homem cruel, nem telefone nem endereço. Nada, absolutamente nada me leva de volta às suas palavras falsas de amor hipócrita. Às vezes penso em como ele está, é claro. Gostaria de saber se sua carreira como escritor avançara como ele sonhava e tecia os seus planos; se ainda continua trancado num escritório de leis abusando das estagiárias interesseiras; se continua amando a arte como me dizia amar. Mas, no fundo, e negarei a vida inteira, queria saber se ele ainda pensa em mim.

Mas que diabos, Cláudia! Você foi aplaudida pelo Municipal inteiro e se põe a pensar no malfeitor da sua desgraça! Ouço a voz do meu agente na cabeça como se ele estivesse aqui. João Miguel é meu amigo. Mais do que isso, irmão. Sei que ele me deseja, mas não posso, nem quero, dar-lhe chances de pensar que pode reter meu corpo febril e me entregar a ele como me entreguei a Jorge. Não sou mais dada a sentimentalidades incongruentes, sou coerente ao que penso. Minha vida é uma terrível farsa, escrita pelo pior autor. Esta sou eu, a mulher que sorri no camarim, mas que se embriaga e chora na solidão disforme da sua imensa e derradeira solidão intimista. O mundo é feito de quimeras, os sonhos de ilusões. Acordar é estar no pesadelo. Planos oníricos invadem a realidade quando o efeito do vinho se vai. Se isto é amor, o que sinto me devastar, juro, não quero amar nem a outrem nem a mim mesma. Quero somente a paz da nostalgia no sorriso inocente da criança que um dia fui e se perdeu numa noite fria, e nada mais.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Capítulo III - Cena III

A taça está vazia. O apartamento está vazio. O meu coração está vazio. A mulher quando ama entrega-se ao sentimento, entrega-se ao outro como se ele fosse a absolvição do pecado de ser mulher. Ela se doa por inteiro sem olhar ao que deixa para trás, para sua individualidade, para seu próprio ser. A mulher se dá e nada recebe além de falsas promessas, de juras risíveis como os amores do homem. Ser mulher é ser condenada ao desengano, é ser mutilada por dentro e ainda sorrir como se lhe fosse um grande favor sofrer por alguém que a usa para saciar sua fome da carne. Eu fui mulher, eu amei e padeci as desgraças de um amor. Mas eu era tola, eu era jovem quando ele me encontrou, quando me deu flores e me iludiu dizendo as palavras mais doces que alguém poderia dizer a uma criança ingênua. Eu devia ler mais poesia na minha meninice, eu deveria conhecer os versos de amor que escapavam da sua boca quando me fitava os olhos e os lábios suplicantes por um beijo. Mas não percebi. Eu não percebi que era conduzida a um mundo escuro em que a razão se apagava como fogo sem ar. Eu amei cegamente um cafajeste, um vil homem cujo caráter não existe. Eu me deixei levar pelo ritmo da sua voz melosa, pelo sotaque elegante, pelos olhos brilhantes de um encanto falso. O amor me deixou marcada pelo desgosto, por isso decidi não mais amar. Jorge foi tudo em minha vida, Jorge foi meu porto onde pensei ancorar a minha fragata danificada. Mas descobri que a segurança nunca existiu, descobri que nunca tive aquele que julgava ser meu.

Encho a taça, mas a vida continua vazia. E de pensar que um dia ela foi plena me causa dores atrozes na cabeça e na alma. Amei como menina, entregando-lhe não só a minha flor mas também todo o meu jardim. Fui a amante perfeita, a dama educada, a prostituta na cama, a pessoa exata para o seu sonho. Fui feliz. Não nego que a felicidade existiu entre nós e me fez sorrir por anos de alegria sem fim. Mas a alegria teve fim. Eu, que lhe daria o mundo, e pensei ter dado, recebi apenas a pior parte do mundo caótico em plena guerra de mutilados.

Mereço a desgraça? Mereço o inferno? Jamais pensei que chegaria ao trágico espetáculo que enceno à minha eterna decepção. Ser iludida, no fim das contas, fez com que eu percebesse que o ser humano é negro como as forças malignas que se escondem nas sombras de nós mesmos. A dor é lacerante.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Capítulo III - Cena II

Choro no escuro. Choro na solidão que me imponho como castigo aos meus males. Tudo é triste, porque não consigo encontrar mais a alegria que um dia tive em mim. O amor me deixou. Ou fui eu que o deixei ir? Quero o regresso a Lisboa, à minha terra triste e tão distante de mim. Podia voltar, podia embarcar no primeiro voo pela manhã e estar novamente nas ruas da minha cidade. Podia recomeçar de onde pensei ser o fim, podia abandonar este Brasil em brasas e resfriar o corpo no frio intenso da solidão lusitana. Mas não, não posso deixar para trás a vida que aqui tracei. Não posso enterrar mais mortos pelo meu caminho sem direção. Sinto falta do Rossio, dos gajos apressados, das raparigas enamoradas, sinto falta das minhas raízes arrancadas, porque já não tenho raízes, já não tenho lugar. Portugal é apenas uma saudosa lembrança desde que cruzei “o mar salgado” para me encontrar e me perder por cá. Faz tantos anos que parti, que disse adeus para minha irmã, que abracei minha mãe, que enterrei meu pai. Faz tanto tempo que Portugal já não é meu como eu também não sou de Portugal. Até meu sotaque se vai embora, desbota. Quase falo como os brasileiros, tenho consumido sua cultura multicolorida, tenho me apaixonado pela música, pelo teatro, pela literatura, pela mulher que nunca cruzei em Lisboa, Oeiras, Cascais, Sintra... mas vim a encontrar no Rio de Janeiro, na correria desenfreada dos passos apressados que sempre tem tempo para o banho de mar. Foi aqui que conheci Cláudia, foi aqui que amei Cláudia, foi aqui que perdi Cláudia. Quero voltar a Portugal, mas...

Se eu fosse um dia o teu olhar,

E tu as minhas mãos também,
se eu fosse um dia o respirar

E tu perfume de ninguém.
Se eu fosse um dia o teu olhar,
E tu as minhas mãos também,
se eu fosse um dia o respirar
E tu perfume de ninguém.

Não há mais o que me dizer. Só restam as lágrimas atravessando a noite. O cigarro me acompanha a loucura, valsando solitária pelo ar das minhas alucinações. Ainda estou bêbado, porque a cabeça gira num vendaval assustador. Torno a me sentar. Estou tonto, estou cansado, estou desesperado pela paz que me falta. Encolho-me na poltrona como se ela fosse a velha mãe a me acolher. O sono chega com força colossal a pesar as minhas pálpebras para baixo. Caem as cortinas do meu espetáculo, a cena tem o seu fim próximo.

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Se eu fosse um dia o teu olhar, Pedro Abrunhosa - Palco, 2003