sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Capítulo III - Cena I

Quando a conheci era aspirante a atriz de uma pequena companhia de teatro. Mas vi na sua interpretação apaixonada que ela iria longe nos palcos, voaria alto. E eu não conseguiria acompanhá-la. Eu jamais alcançaria o brilhantismo de Cláudia em meus textos, jamais conseguiria compor uma peça a sua altura magnânima. E por tanto admirá-la, quis fugir do seu fascínio. Cláudia, antes, era encantadora; hoje, vejo-a consagrada. Queria ter coragem de entrar no Municipal, sentar na primeira fila e contemplá-la em seu brilhantismo sublime, mas não posso fazê-lo. Qual seria minha reação ao vê-la novamente? Eu choraria como um tolo arrependido a me jogar sobre seus pés pequeninos? Eu gritaria ao mundo o amor que deixei escapar pelos meus dedos? Eu pediria perdão por ter sido o homem que a abandonou quando ela mais precisava de mim? O mais provável é que minhas pernas tremessem e eu fugisse como louco pelas ruas a me odiar cada vez mais. Não vou ao teatro, não vou vê-la. Quero guardar comigo as imagens belas que compusemos juntos, as paisagens bucólicas que fingíamos viver. Não quero encerrar um sonho bom quando ele é tudo o que me resta. Tento esquecer Cláudia, embora saiba que é impossível esquecê-la. Mas me forço para fazê-lo.

Vou ao aparelho de som. Reviro os discos, procuro algo que me acalme e também intensifique o que sinto. Não sei o que ouvir ao certo, mas gostava de ouvir alguma música que me levasse de volta à minha terra distante. Sou assombrado por fantasmas do meu passado e também do meu presente. Demoro-me no Abrunhosa. É perfeito para o meu penar, é perfeito para evocar as aparições da minha memória. A música começa, os primeiros acordes do piano, as primeiras lágrimas a escorrem pelo rosto aflito, tristonho.

Aquele era o tempo
Em que as mãos se fechavam
E nas noites brilhantes as palavras voavam,
E eu via que o céu me nascia dos dedos
E a Ursa Maior eram ferros acesos.
Marinheiros perdidos em portos distantes,
Em bares escondidos,
Em sonhos gigantes.
E a cidade vazia,
Da cor do asfalto,
E alguém me pedia que cantasse mais alto.

Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
Quem me diz onde é a estrada?
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
E me diz onde é a estrada

Aquele era o tempo
Em que as sombras se abriam,
Em que homens negavam
O que outros erguiam.
E eu bebia da vida em goles pequenos,
Tropeçava no riso, abraçava venenos.
De costas voltadas não se vê o futuro
Nem o rumo da bala
Nem a falha no muro.
E alguém me gritava
Com voz de profeta
Que o caminho se faz
Entre o alvo e a seta.

Quem leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
Quem me diz onde é a estrada?
Quem leva os meus fantasmas?
Quem leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
E me diz onde e a estrada

De que serve ter o mapa
Se o fim está traçado,
De que serve a terra à vista
Se o barco está parado,
De que serve ter a chave
Se a porta está aberta,
De que servem as palavras
Se a casa está deserta?

Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
Quem me diz onde é a estrada?
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
E me diz onde é a estrada

***
Quem me leva os meus fantasmas - Pedro Abrunhosa; Luz, 2007

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Capítulo II - Cena IX

Há em mim um vazio imenso. Não consigo mais amar ninguém de verdade. A flor murchou em meu peito, taparam-na do sol e agora não resta mais nada além de folhas secas no chão das ilusões que eu tive um dia e agora não passam de tristes recordações que faço de tudo para esquecer. Mas não esqueço quando não há ninguém olhando. Sou dura feito pedra, sou uma rocha impenetrável a quem sentimentalidades não tem vez. É pena, eu, uma mulher tão bela e vivaz seja condenada ao desgosto por um homem, um simples homem que não soube me dar o mínimo do que eu um dia o dei.

A madrugada se estende pela janela aberta. Lá fora os carros passam, a vida segue, eu me calo, disfarço-me em várias máscaras, em mil personagens para fugir de mim. Mas não há fuga, não existe evasão verdadeira para os tormentos da vida. Engraçado dizer-me isso, parece que sou mentirosa, que finjo, mas não sou. Há pouco estava cercada de risos, de aplausos. Há pouco eu recebia flores por viver um eterno fingimento e agradecia com o sorriso tenro de satisfação. Agora, sozinha em meu quarto, sem maquiagem, sem fantasia, vejo-me como sou de verdade: uma mulher amarga.

Mais vinho! Encho minha taça. Quero me embriagar, anestesiar o que me molesta por dentro. Ele não estava lá para ver meu sucesso. Até quando vou correr os olhos pela plateia procurando por ele só para lhe mostrar que eu continuo viva, mesmo sem estar, que eu continuo a brilhar, mesmo que por dentro não exista luz em mim?

Um livro jaz na mesa ao lado. Não me lembro de largá-lo ali. Nem lembro qual foi a última vez que li alguma coisa que não fosse a peça em que eu estaria. Pego-o com displicência, como se não fosse importante, embora tenha sido um dia. Abro-o com me-do do que encontrarei, porque sei que há palavras dele esperando por mim. Não quero ler a dedicatória, malditas palavras de um tempo distante. “Ao meu amor, a prova do meu mais puro afeto...” Que homem mentiroso! Levanto-me. Sem precisar olhar o índice, encontro os versos que quero. Respiro fundo. Na minha decadência noturna, quando ninguém me pode ver, encho os pulmões e declamo intensa...

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

... para depois chorar. Queria gritar ao mundo que não o amo, que jamais amei, mas a mentira se encerra aos meus ouvidos, porque me engano a mim mesma, não a ele, não a outrem. A verdade é que Jorge e suas belas palavras penetraram na minha pele e devastaram minha alma, e não sei o que fazer para me livrar dele.

Outra taça... mais um gole. A noite é longa para os insones.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Capítulo II - Cena VIII

Chegamos ao quarto. A cama vazia. A cama em que penso nela quando pensas em mim. Sou um monstro, Luciana, um monstro de decadência moral e crueldade. Sou um monstro, Luciana, e tu és a princesa enclausurada nas grades da minha loucura. Deito-te com zelo. Teu corpo se espalha no colchão macio. Sentes falta do meu corpo, lan-ças os braços inconscientemente a me procurar. Dou-me pela primeira vez às tuas vontades, deixando o meu corpo saciar o que queres. Ponho-me ao teu lado e te abraço como nunca antes abracei. Envolvo o teu pequeno corpo, aconchegando-te em meu peito. Protejo-te do mundo, protejo-te de mim. Pela primeira vez estamos na cama, e não por malícia ou desejo sexual nos levando ao deleite. Estamos juntos com carinho. Eu te acaricio os cabelos macios, toco-te como nunca antes toquei, toco-te com pureza e afeto, quase um gesto de amor, que nunca saberás que te dei. Ah, orgulho miserável, por que é que me fazes isso? E ficamos assim, juntos, abraçados na noite como dois namorados, que somos, mas nunca fomos. Agora eu diria que te amo, mas, não, Luciana, meu amor não é digno de ti. Deixo o tempo passar um pouco. Não nego que sinto o prazer invadir-me estando presa em meus braços, mas maior que o prazer é a dor que me arrebenta por dentro.

Levanto sem que percebas. Sou especialista em fazer isso. Olho-te mais uma vez deitada na cama, mergulhada em um mundo bom. Salvem os sonhos! Espreito-me na penumbra até voltar à sala. Deixo-me cair na poltrona. Estou exausto. Quero ler um pouco, mas não leio. Há algo mais pungente agora. Acendo um cigarro. O trago me arrepia os pelos e a baforada me alivia a alma. Enfim posso chorar.

Entre as lágrimas, os cigarros queimam numa constante infinita. Não tenho sono, não quero voltar ao quarto e me deitar ao lado de Luciana. Hoje não a desejo, não quero importuná-la com meus acessos de volúpia. Deixarei que a mulher repouse, merece o sono como prêmio ao seu sacrifício. Hoje não estou para nada, hoje não quero nada além da paz que persigo desde que dei o passo errado, desde que saí da vida de Cláudia. Hoje quero apenas cismar em silêncio, sem me preocupar com o que poderia ter sido e não foi. Como fui tolo, inocente, imaturo! Como deixei a felicidade me escorrer pelos dedos como areia no mar. Hoje estou só comigo e meu desmazelo. Preciso esvaziar a cabeça, retirar de mim toda a angústia que me consome e devora meus dias. Só não sei como fazer isso.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Capítulo II - Cena VII

Uma página marcada no livro. A curiosidade me toma. O que andaste a ler, minha querida adormecida? Quais palavras traduziram a tua dor? Deixa-me lê-las ao teu ouvido enquanto dormes. Deixa eu te dar o pouco do amor que te nego todos os dias!

Falo baixo para que não acordes. Quero-te assim como estás: dormente, serena, tranquila.

Para mi corazón basta tu pecho,
para tu libertad bastan mis alas.
Desde mi boca llegará hasta el cielo
lo que estaba dormido sobre tu alma.

Es en ti la ilusión de cada día.
Llegas como el rocío a las corolas.
Socavas el horizonte con tu ausencia.
Eternamente en fuga como la ola.

He dicho que cantabas en el viento
como los pinos y como los mástiles.
Como ellos eres alta y taciturna.
Y entristeces de pronto, como un viaje.

Acogedora como un viejo camino.
Te pueblan ecos y voces nostálgicas.
Yo desperté y a veces emigran y huyen
pájaros que dormían en tu alma.

Fecho o livro, porque estás com os olhos fechados. Desenho-te um sorriso meigo que não poderás nunca ver desenhado em meu rosto, agora, não mais aflito. É noite alta, e tu dormes silente como a borboleta a pousar nas flores. Delicada, serena, linda. Por que é que não te consigo contemplar quando estás desperta? Por que é que não te dou o mínimo de mim quando poderia te dar tudo? Ah, Luciana, por que é que te faço tão mal, e ainda me aguardas voltar aos teus braços mesmo sabendo que nunca fui a eles com plenitude? Quisera não ter por ti só a paixão da carne como alívio às minhas amarguras da alma enferma. Quisera, triste companheira, poder retribuir ao afeto que me dedicas sem me pedir em troca nada além da minha presença ignóbil. Tenho vontade de chorar por ti, mas derramo as lágrimas por mim.

Com cuidado enlaço o teu corpo no sofá e te ergo com delicadeza. Ameaças despertar, tuas pálpebras se apertam, mas não acordas. Puxo-te mais para perto, embalando-te como se fosses um bebê indefeso. Resmungas algo, penso ser meu nome, mas te digo paternalmente para que continues a dormir, e dormes. Os passos ao quarto são lentos, muito vagarosos para não incomodar teus sonhos. Com que sonhas, Luciana? É com dias em que eu te dê o meu amor? Não posso dá-lo, querida. Não posso, porque meu amor não traz alegria. O meu amor é flor ressecada no outono, é mácula de infâ-mia, é dor atroz que fere. Não quero dá-lo a ti, não por maldade, mas por proteção.

sábado, 20 de novembro de 2010

Capítulo II - Cena VI

Algo está errado hoje. Incomoda-me tua indiferença. Um sentimento de vazio me toma por inteiro. Pareço um abismo encoberto de névoa, sentindo o frio gelar-me por dentro sem haver fogo que me aqueça. É isso que sentes todos os dias quando me procuras e eu, na minha indiferença desmedida, te repilo? Se for, sou-te mais cruel do que poderia imaginar que fosse. Há, então, uma necessidade pungente de mudanças em meu comportamento. Não sabia que o esquecimento fosse tão dolorido como um corte no peito. Estou tão acostumado contigo, tão acostumado a não te dar abrigo, que quando me faltas, percebo estar perdido.

Avanço alguns passos em direção à luz. Estás lá. Posso ver as tuas pernas pousadas na almofada jogada no chão. Com passos lentos, atravesso o pequeno corredor e paro de frente a ti. Luciana, chamo-te baixinho. Não me atendes. Estás dormindo. Sento-me na poltrona de frente ao teu corpo cansado de me esperar por horas madrugada a dentro. A luz fraca do abajur te cobre com um brilho amarelado, áureo. Luciana, és tão bonita, tão fascinante. Qualquer homem no mundo faria de tudo para um momento contigo, para sentir o teu toque quente no corpo, para se encantar com teu sorriso. E eu, que tenho a ti, não consigo te amar como mereces ser amada, não consigo te adorar como mereces ser adorada. És meu anjo, Luciana, e eu sou o teu demônio.

O que é isso em tuas mãos? Há um livro adormecido em teu peito. Dormiste a ler o quê? Quem te levou ao mundo dos sonhos? Furtivo, retiro a brochura de cima de ti. Teço um sorriso brando. Tu te encantaste, não era para menos, com Neruda. Foste com o chileno para que terras? Era comigo que sonhavas enquanto sibilavas as palavras do poeta? Quisera que sim, porque gosto quando sou eu que te deixo aflita, porque gosto quando te calas e pensas em mim, no meu beijo, no meu corpo, no meu prazer. Eu! Eu! Eu sou o teu sonho, Luciana, e mesmo que não sejas o meu, envaideço por te ter presa a mim, por saber que és indefesa ao que te faço sentir.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Capítulo II - Cena V

A porta fechada à frente. A pequena placa com os números do meu apartamento. Vacilo em meter a chave na fechadura. O que me espera do outro lado? Qual mulher estará deitada em minha cama? Fruto do meu sonho impossível, Cláudia só me espera na ilusão criada pela minha mente fraca, ébria de desejos e uísque. Não é a mulher fruto da minha paixão arrependida que estará despida em minha cama, eu sei que ela nunca mais estará em meus lençóis amarrotados. É Luciana que me espera. Hoje seria melhor que ela não estivesse ao me aguardo com seu sorriso incansável de ser apaixonado. Que mal te fiz para que tanto desperdices o teu amor comigo? Mereces um homem que con-tribua à tua paixão, jamais deverias ter a mim como amante. Sou-te displicente, sou-te a ferida gangrenada no coração sofrido. Mesmo assim me amas quando procuro nos teus braços abrigo, mesmo assim me amas quando na tua boca sufoco os meus gemidos. És um anjo, Luciana! Tu és o anjo triste da minha consciência perdida. Lamento a dor que minha covardia impinge-te. Hoje, queria ficar só, para não te fazer chorar. Sei que cho-ras quando pensas que não estou a te olhar. Sei que as lágrimas escorrem como um rio dos teus olhos quando me viro à porta e te digo que não tenho horas para voltar. Se eu fosse merecedor de ti, secaria teu pranto com minha boca cheia de pecadas, beberia tuas lágrimas dolentes, acolheria tua cabeça em meus ombros e te acariciaria os cabelos. Eu te amaria, Luciana, como deverias ser amada. Eu te amaria como tu, não sei por quê, me amas.

Giro a chave. Ouço o som da tranca se abrindo. A respiração profunda que me traz equilíbrio. A porta se vai abrindo lentamente como um martírio. Hesito entrar. Meus pés estão fixos na soleira, o capacho me prende — ou é o medo de ter contigo? Espero. Coração acelerado. Não quero conversar contigo esta noite. Esta noite quero somente o silêncio do remorso em minha cabeça. Entro devagar no apartamento. Vejo a fraca luz do abajur ao lado do sofá. Estás lá. Posso senti-la. Estanco novamente. A porta semi-aberta. Fecho-a com cuidado para que não te alarde a minha chegada lastimável. Estou bêbado, e sei que não gostas quando a bebida me consome. Sei que te irritas o hálito forte do meu destempero. Sei que irás me perdoar pelo descuido febril. E isso me dói mais do que o tapa que nunca me destes e, que por muitas vezes, como agora, mereci.

Espero que venhas ao meu encontro. Vais me perguntar por onde andei, com quem estive, com quem namorei. Não vens. Tardas. Por que tardas a me buscar à entrada se todos os dias me recebes com teus sorrisos e olhos brilhantes? Estás assim tão chateada comigo porque estiquei a noite depois do trabalho? Sabes que sempre volto aos teus afagos, Luciana, mesmo querendo que outras mãos desnudem o meu corpo.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Capítulo II - Cena IV

O carro amarelo parou. Entro nele sem vontade. Se não estivesse a trocar as pernas, poderia muito bem sentar-me ao volante do meu. Mas além das pernas, também tenho os olhos cansados, olhos que me traem com imagens que não existem, tenho certeza de que não existem, são apenas mais um delírio provocado pela bebida. O álcool faz a dor parecer menor do que realmente é. O álcool me engana os sentidos e me faz esquecer o que sinto romper em mim. É meu amigo verdadeiro, meu fiel camarada para as horas mais impróprias. Não deveria ter bebido tanto, mas também não deveria ter visto o maldito cartaz em que Cláudia me encarava com seus olhos penetrantes e sensuais. Cláudia está viva e próxima, eu sou o fantasma; eu sou o que jaz no sepulcro das amarguras de que é feita a vida.

Logo estarei em casa. No conforto do meu quarto, no calor da minha cama. Logo estarei em paz, desde que Luciana não esteja esperando por mim. Luciana! Ela me odiará se me vir em tão maltrapilho estado. Coitada! Tanto fez para que eu largasse a bebida, tanto me encheu para que eu esvaziasse as garrafas, e eu estraguei seu trabalho de me libertar de mim mesmo. Como explicar que não tive culpa do meu delito? Como poderia dizer-lhe que me entorpeci porque Cláudia me apareceu na frente e o meu desejo foi de mergulhar na fotografia para amá-la como amei um dia?

Pago ao taxista pela corrida e saio do carro, ainda trocando as pernas. O porteiro imediatamente abre o portão ao me ver parado à frente do prédio, procurando o interfone que deveria ser facilmente tocado. Ele percebe, não é tolo, que estou fora das minhas condições normais. Abre-me o portão e a porta. Posso vê-lo segurando o elevador para que eu vá logo para meu andar. No caminho ouço-o dizer algo como: “Dia ruim?” e respondo-lhe: “Não o dia, mas a vida.” Vejo em seu rosto um sorriso de discórdia. Entro no elevador e olho para o lixo que eu represento no espelho. Tento sorrir, mas me dói o rosto tentar ser hipócrita para mim mesmo. Chego ao meu andar. Caminho sem pressa até a porta e espero. Não quero entrar.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Capítulo II - Cena III

É tarde. Preciso voltar para casa, preciso tirar esta roupa suja de poeira e molhada dos meus suores. Preciso tirar de mim o odor da derrota, da mágoa amarga, do delírio insano, do arrependimento. Preciso encarar Luciana e decidir que vida quero ter. As coisas têm que mudar, urgem mudar, porque a estagnação nos faz mal. Eu queria viver uma vida comum, ter um sentimento comum, mas os meus fantasmas ninguém leva; eles são de minha responsabilidade, são minha tormenta.

Hoje a vida me feriu e as lembranças me dizimaram. Eu hoje vi a imagem de Cláudia num cartaz e minha vida saiu de vez do rumo, seguindo pelo caos. Ainda não estou bêbado, mas o copo mais uma vez está vazio. Eu jurei que não beberia tanto, mas ao passar pelo teatro, a única coisa que quis foi desaparecer no tempo, sumir como poeira numa tempestade de ilusões. Ela estava linda, seus olhos claros fincados em mim, olhavam para mim, queriam a mim. Eu sei, amigo, era só um maldito cartaz, só uma foto promocional de um peça dramática, mas ninguém pode entender o quanto me sensibilizou olhar diretamente para ela, olhar para ela sem que ela pudesse fugir de mim, sem que me atirasse as roupas pela janela, sem que batesse a porta, sem que me condenasse à morte estando vivo.

Mais um trago, companheiro. Encha o copo e esvazie a minha vida. A última dose de esquecimento. É verdade, minha cabeça já não distingue a realidade. Não, eu não deveria mais beber, mas tenho urgência pelo gosto amargo do meu amigo engarrafado. O carro fica, pego um táxi na esquina. O trajeto é curto, mas a viagem longa. Não, não se preocupe. Apenas encha o copo da minha desgraça e vou embora. Amanhã é outro dia. Amanhã ela se apresenta no teatro, mas encena todos os dias em minha vida. Eu sempre soube que ela seria uma grande atriz, sempre soube que ela teria reconhecimento para subir ao palco do Municipal e ser a estrela do espetáculo. Sempre soube que ela voaria alto. E voou, amigo, sem mim.

Você me pergunta quem é ela. Procuro palavras para defini-la, mas não as encontro. Como se pode definir Deus? Como posso definir Cláudia?

Não tenho o controle absoluto da minha consciência. Se é que ainda não a perdi. É melhor pagar a conta e seguir adiante, seguir meu caminho de ilusões em busca de um alívio inexistente. È melhor ir para casa e deixar que o mundo adormeça tranquilo en-quanto eu suo com meus pesadelos mais terríveis.

Deixo o bar como quem deixa a paz para enfrentar a guerra. Vou ao mar das minhas tormentas, navegando rumo às pedras, buscando a morte como se procurasse abrigo para minha alma devastada pelo arrependimento.

sábado, 9 de outubro de 2010

Capítulo II - Cena II

Ele demora a voltar do trabalho, da rua, da vida. Eu estou tão cansada, cansada de tudo, de mim, dele, de nós dois. Estou tão cansada de ficar sozinha, mesmo quando ele está aqui. Fico imaginando por quais ruas ele passa, por quais esquinas se demora, por quais bares me esquece, por quais mulheres se enamora. Sofro do imaginar constan-te, de formular teorias angustiantes, de criar diálogos fascinantes, de dirigir beijos de cinema, de sofrer traições constantes. Jorge, meu amor, meu pecado, meu martírio. Co-mo pode um homem dominar uma mulher como ele me domina? Como posso me entre-gar a quem me repudia? A cabeça é um problema quando o coração padece. A mente cria armadilhas que o coração não entende, mas sente.

Tenho um livro nas mãos. É claro que é um livro dele, porque meus livros são tolos perto da grandiosidade das suas leituras. Eu me sinto superficial, vazia diante da imensa intelectualidade de Jorge. Jamais li um poema como ele, nunca conseguiria pôr o sentimento na entonação como ele faz. A sua voz é serena e apaixonada, tão carregada de emoção que chego a acreditar que é para mim o seu amor; que chego a acreditar que as articulações sibilantes são exclusivas para mim. Mas eu sei que há outra em sua ca-beça quando me diz as palavras de carinho que desenham sua boca. Eu sei que a paixão com que declama é pensando em outra. Pode pensar em outra, mas é comigo que ele se deita, sou eu que ele detém sob seu corpo, sou eu que o faço delirar e suar. Infelizmente, não me dou por satisfeita com o corpo, eu quero a mente, quero ser a única mulher em sua vida, quero ser a sua musa, quero ser o seu amor. É possível?

Estou sozinha. Voltei do trabalho, encontrei o apartamento mergulhado na escu-ridão. Fiz o jantar, pus a mesa e esperei. Esperei até os olhos pesarem e a cabeça doer. Quis dormir, mas a imaginação não deixa. Por isso estou com um livro na mão. Abro-o a esmo.

Me gustas cuando callas porque estás como ausente,
y me oyes desde lejos, y mi voz no te toca.
Parece que los ojos se te hubieran volado
y parece que un beso te cerrara la boca.
Como todas las cosas están llenas de mi alma
emerges de las cosas, llena del alma mía.
Mariposa de sueño, te pareces a mi alma,
y te pareces a la palabra melancolía.
Me gustas cuando callas y estás como distante.
Y estás como quejándote, mariposa en arrullo.
Y me oyes desde lejos, y mi voz no te alcanza:
déjame que me calle con el silencio tuyo.
Déjame que te hable también con tu silencio
claro como una lámpara, simple como un anillo.
Eres como la noche, callada y constelada.
Tu silencio es de estrella, tan lejano y sencillo.
Me gustas cuando callas porque estás como ausente.
Distante y dolorosa como si hubieras muerto.
Una palabra entonces, una sonrisa bastan.
Y estoy alegre, alegre de que no sea cierto.

Realmente, a leitura de Neruda é mais viva no original, Jorge já me havia dito is-so, mas nunca lhe dei importância, apesar de concordar com ele somente para agradá-lo. Hoje eu li com outros olhos, com outro sentimento. O som, a formação das palavras na boca, o bailar da língua é tão mais belo no espanhol, tão mais vivo, tão mais excitante. Não entendo tudo, mas o que consigo entender do poema me engrandece a paixão.

Sou tola de ficar aqui lendo poemas enquanto Jorge vaga pelas ruas numa busca desesperada pelo amor que eu não posso dar. Sei que sou tola por esperá-lo, se nem sei se ele vai voltar. Mas ele sempre volta, no fim, ele sempre volta para os meus braços, para minha vida. Não existe vida sem Jorge. Não existe mundo sem ele em mim.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Capítulo II - Cena I

Deixei Luciana em casa há poucos minutos. Às vezes tenho vontade de deixá-la para sempre, não voltar a entrar em casa, não voltar a entrar nela, mas não consigo. Não é porque não gosto dela, na verdade gosto tanto, que não posso suportar a forma fria como a trato. Infelizmente não sinto por ela o mesmo que sinto por ti, que marcaste minha vida como ferro em brasa ardendo no couro.

Não sou mais o homem que um dia fui. Eu mudei, mas a mudança se deu tarde demais para nós dois. Hoje sou um homem fiel, não mais me deleito em outros braços, não mais adormeço em outros seios. Bastam-me os seios dela para acolher minha cabeça cheia de delírios. É difícil de acreditar que um cafajeste se endireite, mas depois de te perder, obriguei-me a ser o homem que esperavas que eu fosse. Dirias que é tarde demais, eu te conheço o suficiente para saber que minhas palavras não fariam que me perdoasses, mesmo assim insisto em dizê-las para amenizar minhas crises internas, para que meu arrependimento não seja mortal, como foi no dia em que me deixaste por descobrires minhas falhas, por descobrires meus desenganos.


A quem quero enganar? Ninguém ouve meus pensamentos. Cláudia não passa de uma ilusão que me persegue, um fantasma que me assombra. Luciana é meu presente, mas não consigo amá-la da mesma forma que amei quem não dei o merecido valor quando poderia dar o mundo em troca de um simples sorriso. Deveria, portanto, tratar quem me ama da mesma forma como sou tratado, mas algo me impede. É esse fantasma que anda ao meu lado, é a lembrança que não consigo esquecer, é a saudade que me destroça, é Cláudia que me vem à cabeça sempre que fecho os olhos.

Meus cigarros acabaram. Preciso fumar, porque a nicotina me entorpece a loucura. Entro num bar qualquer e peço um maço de veneno enrolado. Olho as prateleiras e me sinto seduzido por uma garrafa de bebida barata. Quero pedir uma dose de qualquer coisa, algo que me faça esquecer a minha vida por alguns instantes. Quase peço ao atendente uma pequena dose apenas para sentir o gosto ardente do álcool em minha boca para me fazer esquecer o gosto da boca de Cláudia, mas ainda não é hora de beber, ainda não é hora de deixar a cabeça tombar no balcão e a mente sair do lugar. Não regressarei meus dias para o momento em que busquei na bebida um alívio às minhas dores, embora tenha Fernando Pessoa na cabeça: “Há doenças piores que as doenças”.

Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida.
Há tanta cousa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

“Dá-me mais vinho, porque a vida é nada”, repito ao fim do poema, em voz alta, causando espanto no bar. Peço desculpas, acendo o cigarro e volto à rua. Luciana me tirou do fundo do poço, não é justo comigo, nem com ela, descer novamente ao abismo em que minha vida vacilou.


terça-feira, 28 de setembro de 2010

Cena IV - Parte II

Pareço uma velha desiludida reclamando da vida. Não sou nem velha, nem desiludida, sou apenas uma mulher que sofreu um amor, que teve a vida retirada da órbita normal e agora olha para o passado com saudosa lembrança. Florbela Espanca tem um soneto belíssimo, um soneto que me acompanhou nos momentos de crise, quando pensei que a vida perdera totalmente a cor. Eu lia, declamava mentalmente, chorava com a força verdadeira dos versos de “Eu”, debulhava-me em lágrimas, manchando meu rosto com a maquiagem borrada pela minha dor. Como era tola, ingênua por deixar que um homem fizesse tanto estrago em mim. Ele não merecia minha vida, mesmo assim, iludida por uma paixão sem limites, entreguei-a sem medir as consequências, sem temer o meu destino ao seu lado. Eu enganei meus sonhos. Os versos de Florbela me escapam pela boca.

Eu sou a que no mundo anda perdida,
eu sou a que na vida não tem norte,
sou a irmã do sonho, e desta sorte
sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
e que o destino amargo, triste e forte,
impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que alguém sonhou.
Alguém que veio ao mundo pra me ver
e que nunca na vida me encontrou.

Como era tola. Queria declamar nos ouvidos dele a dor da mulher que ama e sofre. Não o fiz, e hoje dou graças por não ter feito. Jamais daria a Jorge o gosto de saber que eu padecia por ele. E eu o amava tanto...

Mas a doença foi curada. Esse amor doentio se foi. Hoje eu sou mulher, não mais a menina tola que se enganava com promessas vacilantes de um homem sem caráter, de um homem que só sabe fazer sofrer aqueles que o amam. Eu não ando mais perdida, eu tenho meu norte! Liberta, feliz! Não porque um homem me ama, mas porque eu me amo acima de tudo. Não preciso de um homem para me realizar, realizo-me no palco, encarando a plateia concentrada, centenas de pessoas que lotam o teatro para me verem ser rainha dos mundos imaginários, para me verem ser a prostituta sifilítica que implora redenção, para me verem interpretar as vidas que criam para mim. Eu não pertenço mais a ninguém além de mim mesma. Mulher forte, de pulso. Eu sou Cláudia de Albuquerque, atriz, mulher.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Cena IV - Parte I

A vida segue, e a gente quase não nota o quão rápido ela atravessa os caminhos. Não, não sou infeliz; digo a mim mesma todas as manhãs diante do espelho, fitando meus olhos chorosos e as rugas que me vão surgindo no rosto. Acontece que tem dias em que acordo com as lembranças tão vivas na minha memória que tenho a infeliz impressão de que elas aconteceram há pouco tempo. Meu grande problema é que não consigo disfarçar meu rosto pensativo quando sou acometida pela doença que me pôs de cama por meses, quando sou acometida pelo delírio dos braços que malfadaram minha vida por longo sofrimento travestido de amor. Mas o amor não deveria doer, no entanto dói. O amor deveria ser felicidade, no entanto causa tristeza. O amor deveria ser fogo, no entanto gela na ausência. Pego-me pensando naquele poema de Camões que ele gostava tanto. Quero esquecer o poema para não ter que me lembrar do meu assassino da poesia. Sempre que me pego a declamar mentalmente o soneto Amor é fogo que arde sem se ver, sinto um desconforto me bulir por dentro, uma ânsia exasperada que me faz contorcer o corpo e devastar a mente por lembrar daqueles lábios articulando as palavras com lentidão lasciva, quase me fazendo estremecer; lembro dos olhos penetrantes em minha pele, deixando-me tonta e desatinada; da voz rouca que me arrepiava os pelos da nuca e fazia o meu estômago apertar. Isso me enoja. Um dia fora prazeroso ouvir os versos saírem daquela boca para me enlouquecer, mas hoje eles me dão nojo, asco, raiva. Sei que era melhor não significarem nada, mas não consigo ser blasé a quem me fez sair do meu eixo, perder a minha rota e mudar o meu destino.

Deixa disso, Cláudia. Eu não posso passar a vida pensando no que poderia ser. Há tantos “ses" como muitos “poréns”. O destino me pregou uma peça. Uma estúpida peça que não fez ninguém rir durante o espetáculo tragicômico que representa minha angústia ou quando desceram rapidamente as cortinas do teatro enquanto eu fazia a última cena do meu monólogo enfurecido. É preciso encarar a realidade como sempre fiz, sem olhar para trás, sem olhar para os males que durante tanto tempo trouxe comigo.

Minha vida é bela, não é perfeita, mas é bela. E não será um homem, seja ele quem for, o causador da minha moléstia. Água fria no rosto é um ótimo remédio para voltar ao mundo real, o mundo infinitivo, certo, aquele a que fui obrigada a viver sem as idealizações platônicas do sensível. Não há espaços para o sonho infantil da menina de vestido rosa conduzida pelo pai num baile de debutantes fora de época. Eu sou mais do que isso, muito mais do que uma estupidez sem sentido no tempo da liberdade feminina. Nada é mais estúpido do que sonhar com o tal príncipe encantado quando ele próprio nos mostra que o castelo é o brejo. O amor encanta, suga, deslumbra, detona, mas é só o amor, essa utopia que acreditamos fazer sentido quando não há mais sentido em nada.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Cena III

Sinto-me péssimo quando vejo Luciana nos dias em que a imagem de Cláudia se faz viva em mim. É duro olhar para Luciana sem ter o remorso me corroer por dentro como ferrugem consumindo o ferro abandonado, como o meu amor despedaçado. Ela é uma mulher tão boa, tão carinhosa, tão caridosa aos meus tormentos. E na maioria das vezes a trato tão mal. Mas é inerente à minha vontade, não lhe quero fazer sofrer, não quero lhe causar dor, mas sei que causo o seu descontentar.

Já me perguntei mil vezes se realmente a amo, ou apenas a uso para aliviar a falta de Cláudia em minha vida. Mil vezes me pergunto se não seria melhor pôr um ponto final nessa história desgraçada de amores falidos, mas acabo por aceitar a minha própria passividade.

Entro no carro. Estou atrasado para o trabalho. E o pior, estou com tanto sono que poderia dormir o dia inteiro sem me importar com o resto do mundo, com a crise financeira, com a iminência de uma guerra. A minha cabeça cai sobre o volante. O couro me marca a tez, e tudo o que quero é dormir, chorar, esquecer. Faltarei o trabalho. Ninguém dará por minha falta no escritório. A quem quero enganar? É claro que sentirão a minha ausência, esperam que eu dê fim aos relatórios das ações financeiras. Mas minha cabeça hoje não é boa para resolver cálculos, preencher formulários. Nada na minha vida funciona quando Cláudia me rompe a noite e ultrapassa os limites do dia. O que farei no escritório se onde quero estar é longe de papéis, pastas, relatórios. Quero a calmaria da praia, quero o vento no rosto, quero água de coco, quero a paz das horas de ócio, quero Cláudia em mim como esteve um dia. Não em pensamentos, não em lembranças, não na memória, quero-a em minha vida como centro do universo, como razão da existência. Queria a máquina do tempo, voltar meus passos, calar minhas palavras antes que fossem ditas, queria não ter sido fraco, não ter aproveitado o instante, não ter dado o passo errado quando estávamos na beira do abismo. Mas não tenho à disposição a máquina, nem tempo para reparar o erro maior da minha infantilidade instintiva animal. Queria voltar no tempo e ser outro homem quando deveria ter sido. Queria voltar no tempo e estancar o sangue vertido. Queria voltar no tempo e ter sido o bom marido. Mas não posso. E o que queria agora não passa de uma hipotética tentativa de justificar a forma como trato quem hoje me dá amor sem nada pedir. Cláudia não volta, assim como o passado. Luciana é o meu presente, mas não consigo pensar nela como futuro. Jamais imaginei que seria Luciana a mulher que me daria um filho, que me daria a continuação dos dias quando a terra me cobrir a matéria apodrecida. Amamos aquilo que não podemos ter. E eu tinha o que tanto amei, mas não dei valor ao que me alimentava a emoção quando ela se me estendia à frente, acalentando minha alucinação febril.

Não posso ficar aqui parado o dia inteiro. Acendo mais um cigarro, já é o quinto do dia, abro as janelas e ligo o motor. Estou de saída para o nada, para o escritório de paletó e gravata. E de pensar que me bastava a sunga e Cláudia para que a vida fosse a eterna primavera dentro do peito.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Cena II - Parte III


Você vai para o banho. Diz querer se livrar da poluição das ruas, da sujeira do ar, do cheiro da fumaça do seu cigarro, dos carros. Entra no banheiro e tranca a porta. Não quer que eu entre. Não quer que eu dê banho em você? Eu esfregaria as suas costas, deixaria a água escorrer pelos meus dedos e cair em seu corpo, lavaria os seus pés. Depois, enxugaria seu corpo molhado, a cabeça, os seus cabelos castanhos. Se você quisesse, Jorge, faria a sua barba com maestria, com amor. Mas você não me quer agora, Jorge. Por que não me quer aos seus pés, realizando suas vontades, cuidando de você?

Mas eu cuido, de um jeito ou de outro, eu cuido. Faço o seu café. Sei que você gosta do meu café, o café forte, moído na hora, quente. Arrumo a mesa, ponha a sua xícara, o pão de forma, o queijo de minas, a manteiga. Queria que você tomasse um suco de laranja, comesse uma fruta no desjejum, mas você não gosta disso. Não troca seus vícios, não abandona seus hábitos. Primeiro eu preparo o que lhe dá prazer, depois sacio a minha fome. Não importa mesmo, a fome maior é de você. Não me importo em pensar em você primeiro, não ligo para a anulação do meu ser, desde que você não fique insatisfeito. Isso é amor, não é, Jorge? Faço porque amo você, faço porque nada é mais prazeroso do que ver você feliz. A minha felicidade está no seu sorriso, mesmo quando não me diz um simples obrigado, mesmo quando sai apressado e passa por mim como um furacão devastando o apartamento.

Seu banho finalmente acabou. Ouvi a maçaneta girar. Você fica tão bonito quando sai do chuveiro enrolado na toalha. Sua pele reluz, cheira bem. Eu estremeço quando vejo você acordar para o dia. Seu peito nu me convida para me emaranhar em seus pelos. Se eu pudesse, agora mesmo arrancaria a toalha da sua cintura e faria o seu dia ser mais feliz, pena que tão cedo não temos tempo para brincadeiras embaixo do lençol. O trabalho nos chama sem se importar com nossas alegrias. Você não pode se atrasar para o escritório, eu não posso atrasar você para os seus afazeres. Voltando do quarto, seu rosto está ainda mais bonito. Adoro quando faz a barba e fica com a pele lisa. Parece um menino pronto para descobrir a vida. Eu sei que a vida já passou por você, mas a impressão é de que ela não lhe deixou marcas gravadas na face. Você é tão bonito como no dia em que conheci você. Vem, Jorge, senta aqui comigo. Vamos tomar o desjejum.

Não gosto quando você fica mudo, quando seu olhar fica perdido em algum ponto do nada e sua mente está presa no desconhecido. E queria que conversássemos mais, que dividíssemos os problemas. Mas você não gosta de compartilhar os pensamentos, e isso me dói um pouco. Na verdade, dói muito. Mas eu entendendo. Sei que há coisas em você que não podem ser ditas. Mas não sou tão burra assim, apenas respeito o seu silêncio, porque, se forçá-lo, a onda nervosa pode me afogar. Deixo você com seus conflitos. Quero apenas abrandá-los, quero apenas fazer você feliz. Um dia, eu sei que vou conseguir fazer de você um homem pleno, sem medos, sem receios, sem traumas. Até lá, eu me firmo à promessa de amar você como ninguém nunca ousou amar, eu me firmo na esperança de que suas cicatrizes se fechem e você só tenha os olhos e os sentimentos para mim.

Hoje você me beijou a testa antes de sair, deixando-me sozinha novamente. Uma lágrima escorre em meus olhos quando você bate à porta e sai para sua vida. Será que você volta cedo hoje? Será que se eu ligar para almoçarmos juntos, você aceitará o meu convite? Temo que não. Hoje você está com aquele olhar perdido. E, quando o leio, sei que você quer ficar sozinho.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Cena II - Parte II

Isso é amor, Jorge. Embora tenha por mim que seja loucura, quem sabe obsessão. Mas não é o amor um pouco de loucura? Amar é perder a razão de si e do mundo para sentir o paraíso na terra, nos braços daquele a quem se ama. O amor é um paradoxo sem fim, bem dizia o poeta que você gosta naquele poema que leu para mim, mas pensando nela, eu sei.

Agora me lembro bem daquela noite. Você lia um livro de sonetos e eu interrompi a sua leitura para lhe oferecer uma taça de vinho e o meu corpo. Seus olhos se ergueram das páginas amareladas e fitaram os meus olhos esperançosos. Pegou-me a taça das mãos e me sorriu, a fim de disfarçar a tristeza que o amor lhe causava. Eu senti, Jorge, que não era eu a mulher que você queria naquele momento, que não era por mim que seu coração palpitava, mas, mesmo assim, você me segurou a mão, disse para que eu me sentasse ao seu lado e o ouvisse dizer do amor. A sua voz me invade os ouvidos agora, com o sol a meio-mar, como naquela noite sem lua.

Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Quando terminou a leitura do poema, meus olhos estavam marejados, baços, tristes, porque eu sabia que a sua comoção não era pelo meu amor, era pelo amor dela; da mulher que roubou você de você mesmo. Não sei se percebeu o que se passava em mim, não sei o que se passava em você, mas fechou o livro e me tomou como mulher, amou a ela no meu corpo, despedaçou-me mais um pouco. Eu me iludi, deixei que você fizesse de mim o seu brinquedo para esquecê-la. Mas você não a esquece, não é? Naquela noite, Jorge, a dor me desatinou e doeu como nunca, apesar de me esforçar para que você não percebesse que meus gemidos não eram de prazer.

Com sol, você chega. Eu o ouço abrir a porta devagar e entrar lentamente, talvez pensando que eu ainda esteja dormindo. O que vai fazer? Ou melhor, pretendia fazer, já que eu o surpreendo com a minha aparição na porta do quarto? Acredito que se deitaria ao meu lado e fingiria nunca ter saído, para que eu acordasse e visse você ao meu lado. Mas hoje não teve sorte, não é? Não contava em me ver acordada tão cedo. Quero lhe interrogar, perguntar onde esteve à noite, com quem estive até se lembrar de voltar para casa; mas tenho medo de que você se irrite comigo e resolva me deixar. Eu aguento tudo, Jorge, mas não posso viver sem você. Se você sair pela porta, dizendo adeus, a minha vida acaba, o meu mundo desaba. Não posso suportar a ideia de perder você. Só a possibilidade remota, a vaga hipótese faz com que minhas pernas tremam e eu perca o fôlego.

Fito os seus olhos com seriedade, mas sou incapaz de brigar com você. Por dentro, o ciúme me arde, mas o deixo mudo, quieto em meu ser. Por dentro, a insegurança me fere, mas a deixo guardada, intocada em meu ser. Quero você, Jorge, mesmo quando desaparece da minha cama e volta com o rosto amargo, como agora. Pergunto dissimulada, num tom sereno e carinhoso onde estava, onde passou a noite. Você me responde que apenas quis caminhar. Diz para eu não me preocupar com você. Mas eu não consigo. Meu coração vai com você, Jorge, para onde quer que você vá. Ele chora por você sempre que a cama está vazia, sempre que o travesseiro não aconchega a sua cabeça. Penso em questionar o motivo para que você tenha me deixado sozinha, nua, esperando por você, mas o seu sorriso me desarma e esqueço as dores da minha alma, parada à porta do quarto, sempre esperando pelas suas mãos em mim, pelo seu corpo no meu.

sábado, 11 de setembro de 2010

Cena II - Parte I


Novamente me vejo sozinha quando acordo. Jorge não está. Não dormiu comigo novamente. Mais uma vez tateio a cama e não sinto o seu corpo ao meu lado. E tudo o que eu queria era vê-lo quando abro os olhos depois dos sonhos. Queria me sentir segura como toda mulher amada se sente, queria tê-lo em minha vida mais presente do que apenas quando me despe a roupa e se deita comigo.

Pela janela o dia nasce num tom arroxeado e bonito. O sol vem de leve, como se levantasse de um mergulho no mar, surgindo pouco a pouco, trazendo luz à escuridão da nossa vida. Eu queria que você estivesse aqui, Jorge, para ver o sol nascer comigo, eu queria que estivesse aqui para me abraçar e dizer ao meu ouvido as palavras que da sua boca não me diz. Mas você não está, Jorge! Você nunca está comigo. Tudo o que queria era o seu companheirismo. Eu também preciso de alguém que me aqueça o coração, querido, porque como você, eu também tenho meus sofrimentos guardados no meu peito. Mas são diferentes, você diz. E são mesmo, não é verdade? A diferença, Jorge, é que eu amo você mesmo sabendo que você não tem por mim o mesmo amor que lhe dedico. É por isso que me pego a chorar baixinho quando acordo e sinto esta lacuna em mim, este imenso buraco, a falta de um afeto verdadeiro que me faça, de verdade, feliz.

De quem é a culpa afinal? É sua, que me usa para satisfazer as suas vontades, ou é minha, que me submeto aos caprichos de um amor desigual? Acredito que seja um pouco dos dois. Cada um de nós tem sua parcela de culpa neste jogo perigoso do amor. E se eu fosse orgulhosa, se eu fosse mais mulher do que menina, teria posto um fim ao martírio de amar sem ser amada, mas entre ter você para mim por um instante e não lhe ter pela vida inteira, prefiro agarrar-me ao que tenho a passar a vida como você, querido. Eu sei que muitas vezes me procura para aplacar a falta dela, eu sei que me invade muitas vezes pensando nela, mas eu só penso em você, Jorge. E quando nos sussurros do amor é o outro nome que chama, eu me congelo na dor que as suas palavras me causam, como ferro em brasa marcando a pele, e me esforço para você não perceber que eu não sou ela. É claro que não quero ser ela, quero ser eu na sua vida, mas se a única forma que tenho para prendê-lo a mim for a anulação do meu ser, eu me anulo para poder sentir um mínimo da paixão que arde em seu corpo e pulula em sua mente.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Cena I - Parte 3


Passos calados num mundo de vozes na cabeça. Quem me vê nesta minha caminhada deve me achar um louco, e sou. Sou louco, Luciana! Sou louco por ter na cama o teu amor e na cabeça o amor dela. Queria poder dá-lo a ti, mas ele não me pertence. É dela, meu amor é dela como todo o meu eu é. Não minto a ti, minha querida companheira, sempre soubeste que tinha este amor doente em minhas veias. Nunca te escondi o meu sofrimento, e mesmo assim me aceitas em teu abraço, mesmo assim me tens em tua cama. Não me cobras nada, por isso te admiro tanto; por isso dói tanto me lembrar dela depois que me entrego a ti. E, quantas vezes eu devo ter dito num sussurro insano o nome que tanto te causa arrepios de desprazer enquanto nos amamos? Sei que não foram poucas as vezes em que te machuquei com o sibilar despercebido ao teu ouvido.

Queria me desculpar por isso, mas sei que não existe perdão por esta falta cruel. Admiro-te por seres tão forte ao mesmo tempo que te odeio por seres tão compassiva ao meu delírio. Tu és minha amiga e confidente nas minhas horas de ruína, tu és minha amante e mulher nas minhas horas de fulgor. Não mereces o pouco que te ofereço, mereces muito mais, porém nada tenho a dar. Sabias disso quanto me acolheste nos braços. Sabias que eu sempre fui e serei dela quando me estendeste a mão delicada e me tomaste no teu colo para me embalares como criança que teme a noite solitária. Quem se aproveitou de quem? Fui eu que me aproveitei do teu amor solidário ou foste tu que te aproveitaste do meu devaneio? Os dois temos culpa. Mas maior culpa é a minha por ter cativado o teu sentimento maior quando deveríamos ter mantido a amizade antiga que fizemos crescer nas andanças da vida. Sempre me amaste como homem, e eu sempre te vi como irmã. Acredito que seja por isso que depois de estar dentro de ti sinto o remorso me corroer. Deves me achar um canalha por dizer isso, mas, como homem, não tenho princípios, ajo por um instinto animal sedento pelo teu sexo delirante, porém depois, quando o fogo da carne se abranda, tenho raiva de mim por pecar contra o teu ser.

Eu odeio pensar nela, mas sou levado pela memória como um cego é pelas mãos conduzido pelo caminho do desconhecido. A lembrança é meu próprio algoz, enterra o meu presente nas correntes do passado, tornando o futuro um imenso ponto de interro-gação. E sem ela, terei eu algum futuro? Sou fraco em pensar que a morte me traria alívio aos infortúnios que carrego. Pensei em findar as minhas dores com uma atitude desvairada, mas me faltou a coragem para prosseguir com a fuga incosequente. Ou fora um momento de luz? Não sei, Luciana, não sei te dizer o porquê de ter desistido do espetáculo inglório do meu fim estúpido. Meu coração partido e minha descrença no mundo não se ligam a ti, a única coisa boa que me ocorreu desde que eu a perdi. Já me perguntaste uma vez sobre ela, mas não pude te dizer uma palavra sobre o meu pesadelo, não fui capaz de te contar os meus segredos ou por quem deito minhas lágrimas quando imagino que não me estás a ver. Desejei que tu não soubesses da existência dela em mim, do que vive antes de ti, no entanto sempre soubeste que ela havia passado por mim e me deixou marcas profundas na pele e na alma. Não mereces a desilusão infame que te dou, mereces que eu te ame na medida em que me amas. Sei do teu amor puro, sei do teu carinho inocente, sei da tua dor aguda no silêncio da madrugada, quando te abandono solitária para pensar nela. Eu mesmo me pergunto quando é que não estou com ela em minha cabeça.

À diante, avisto o mar revolto. As ondas estão nervosas no encontro com as rochas. Sento-me na areia e vislumbro a fúria da natureza. Queria ser como a rocha que recebe sucessivas pancadas e permanece no mesmo lugar, indiferente, intacta, forte. Se eu fosse forte! Mas não o sou. Sozinho, no frio da madrugada, meu corpo se encolhe com os pelos arrepiados. Outro cigarro acendo, trago, e choro. A noite é fria como o deserto em minha alma.

sábado, 4 de setembro de 2010

Cena I - parte 2


Luciana, chamo teu nome baixinho para me certificar de que voltaste a dormir. Não me respondes, como eu imaginava. Novamente foste pega pela mão do sono e conduzida para a paz que serenas.

Levanto-me devagar, sem fazer barulho. Pego a calça jeans e uma camisa qual-quer. Saio do quarto, deixando-te na solidão da noite fria. Visto-me no corredor e antes que me dê conta de mim, estou na porta. Resolvo sair um pouco, caminhar pela cidade adormecida. Não consigo mais ficar em casa, não consigo mais sentir teu cheiro no ar. Quis que a fumaça do cigarro disfarçasse o teu cheiro, mas ele está em tudo, Luciana, em todo o apartamento. Desculpe-me, querida, mas preciso de ar, preciso sentir o vento no rosto, preciso me desvencilhar de ti quando penso nela. O porteiro me olha de lado quando passo por ele. O portão se abre num clique seco e eu entro no mundo real.

Estou na rua. Um carro passa, outro para. Não há o movimento constante de pas-sos nesta hora. Deve ser três da manhã, mas na pressa não peguei o relógio. A cidade está tão violenta que não quis levar nada além da carteira de identidade metida no bolso. Sem dinheiro, sem horas, sem rumo, ponho-me andar pela solidão das ruas adormeci-das. O céu está aberto, há estrelas, mas faz frio, e eu não trouxe o agasalho. Meus braços tremem, minhas mãos doem, mas pouco me importa. Meu coração agora é frio também.

Penso nela. Queria discar o número que tantas vezes disquei, mas não trouxe comigo o celular. Poderia ligar de um telefone público, mas depois da agenda eletrônica nunca mais consegui guardar um número de memória, nem mesmo o dela. Não ligaria de qualquer forma, é apenas a vontade bruta de ouvi-la dizer-me alô. Apenas uma pala-vra pela sua voz macia já me aliviaria a tormenta, mas não vou ligar, vou continuar com o meu desejo latente sem que possa revelá-lo. E por que não revelo? É porque tenho medo de me passar como tolo em procurá-la depois de tudo, depois de tanto tempo. Sei que não me entendes nem entendes esta minha loucura, mas quero que me ouças sem nada te dizer; quero que me compreendas sem que nada diga por hora.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Cena I - parte 1


Na escuridão silenciosa do quarto fechado, ergo-me da cama com cuidado. Ao meu lado ela ainda dorme entregue ao cansaço e aos sonhos da tranquilidade. A sua tranquilidade é oposta ao meu martírio, um contraste de agonias que me estremece e faz a cabeça pesar mais do que deveria na profusão agonizante dos meus pensamentos. Sento-me na cadeira e acendo o meu cigarro. Apenas o vermelho da ponta incandescente circula na escuridão como um vaga-lume de fogo. A primeira tragada me acalma a ten-são de aqui estar, no meu quarto, olhando para minha cama, vendo a minha mulher dormir como se o mundo fosse um lugar de serenidade, tão distante dos meus amargos pesadelos.

Seu corpo nu sobre a cama, o lençol beijando suas costas, o cabelo preto jogado de lado, a pele clara marcada pelos meus dedos alucinados, ela é ainda mais bonita no silêncio da madrugada. Da cadeira, tenho vontade de me lançar sobre ela e amá-la, devorar os seus desejos, arrancá-la da serenidade dos sonhos e possuí-la com ferocidade instintiva até calar o monstro que me toma quando olho para ela, dormindo, passiva, frágil ao meu dispor. Mas não o faço.

Luciana dorme, eu não. Queria poder calar a voz que grita em minha consciência perturbada por um amor sem cura, uma ferida aberta que teima em sangrar depois do sexo, depois do ardor da volúpia. Não digo que seja justo, mas não consigo apagar o rosto sorridente das minhas lembranças, não consigo amargar o gosto doce do beijo que me faz delirar como um louco à porta do céu.

Minha querida, olhar para teu corpo me estremece. Gosto de ti, minha querida amante, mas não posso deixar de amá-la. Gosto de ti, minha doce Luciana, mas não posso retirar de mim o perfume dela, posto que está tão empregado em meus poros, que, por mais que queira, ele não sai. Deveria pedir-te o perdão, mas não posso me arrepender dos pecados que não julgo ter cometido. Gosto de ti, mas não posso te amar.

Inclinas a cabeça devagar. Estás acordada. Teu corpo desenha uma curva belíssima diante dos meus olhos. Eu me remexo na cadeira, tu percebes na escuridão que não estou ao teu lado. Inspiras com força e sentes o cheiro forte da fumaça do cigarro. Resmungas, mas, como é do teu feitio, não dizes nada. Com a tua voz mansa me perguntas por que não me vou deitar contigo. Respondo que não tardo; que irei terminar o cigarro primeiro. Sabes o quanto gosto de fumar à noite, depois do sexo, o longo trago que me põe de volta ao mundo real. Sei que não gostas que eu fume no quarto, sei o quanto a fumaça te irritas, mas não posso ir à varanda como vim ao mundo. Gosto de te olhar enquanto fumo, explico sem te comover. Pedes para que eu volte aos lençóis, pedes para que eu volte ao seu corpo. Prometo-te que não tardo, mas sei que não voltarei agora. Não posso buscar os teus braços enquanto minha mente está presa nos olhos dela. Invento-te uma desculpa para que durmas à minha espera. Logo dormirás, estás tão sonolenta, que não vês que acendo outro cigarro e me perco de mim mesmo.

Conversa antes do beijo


Eternos Amantes é meu novo trabalho, o nono romance que escrevo. Desta vez, porém, quis fazer algo diferente do habitual sofrer de teclas nas madrugadas insones, enchendo a cara de café e enfumaçando o quarto com a fumaça do meu cigarro. Mudar hábitos, sair da rotina é o que preciso para resgatar o “feeling” perdido depois de terminar O Jogador e apanhar para dar cabo da Vila do Medo.

A ideia central desta nova trama surgiu enquanto lia A Eternidade e o Desejo, da genial Inês Pedrosa. A prosa poética da escritora portuguesa me encanta. Fazia tempo que eu gostaria de escrever com o lirismo que se desenhou em Memórias em Ruínas e morreu na ideia abstrata de A Marcenaria dos Esquecidos.

Com o “insight” que tive iluminar minha noite, rascunhei as primeiras linhas do embrião do romance e gostei do que li. Escrevi uma cena inteira de vez, sem dar trégua, sem parar para respirar. Inseguro, resolvi abrir as páginas publicamente em meu website a fim de pôr à prova as linhas escritas na madrugada solitária. Comentários positivos, continuei a empreitada até resolver parar com a escrita, uma greve forçada do texto, a fim de limpar a mente.

Recentemente, Hugo Caldeira, num bate-papo virtual, sugeriu que fizesse um blog para publicar o livro na medida em que o fosse escrevendo. Gostei do que o ex-aluno disse, e aqui estou escrevendo as primeiras linhas do novo “blog”.

Sejam bem-vindos a mais esta ilusão minha. Sintam-se à vontade para comentar, criticar, sugerir. Este espaço é nosso. Autor e leitores compartilhando os mesmos interesses, dividindo as mesmas angústias, esperando a cena final. Espero que gostem de Eternos Amantes como eu tenho gostado de escrevê-lo.

Abraços!