segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Cena III

Sinto-me péssimo quando vejo Luciana nos dias em que a imagem de Cláudia se faz viva em mim. É duro olhar para Luciana sem ter o remorso me corroer por dentro como ferrugem consumindo o ferro abandonado, como o meu amor despedaçado. Ela é uma mulher tão boa, tão carinhosa, tão caridosa aos meus tormentos. E na maioria das vezes a trato tão mal. Mas é inerente à minha vontade, não lhe quero fazer sofrer, não quero lhe causar dor, mas sei que causo o seu descontentar.

Já me perguntei mil vezes se realmente a amo, ou apenas a uso para aliviar a falta de Cláudia em minha vida. Mil vezes me pergunto se não seria melhor pôr um ponto final nessa história desgraçada de amores falidos, mas acabo por aceitar a minha própria passividade.

Entro no carro. Estou atrasado para o trabalho. E o pior, estou com tanto sono que poderia dormir o dia inteiro sem me importar com o resto do mundo, com a crise financeira, com a iminência de uma guerra. A minha cabeça cai sobre o volante. O couro me marca a tez, e tudo o que quero é dormir, chorar, esquecer. Faltarei o trabalho. Ninguém dará por minha falta no escritório. A quem quero enganar? É claro que sentirão a minha ausência, esperam que eu dê fim aos relatórios das ações financeiras. Mas minha cabeça hoje não é boa para resolver cálculos, preencher formulários. Nada na minha vida funciona quando Cláudia me rompe a noite e ultrapassa os limites do dia. O que farei no escritório se onde quero estar é longe de papéis, pastas, relatórios. Quero a calmaria da praia, quero o vento no rosto, quero água de coco, quero a paz das horas de ócio, quero Cláudia em mim como esteve um dia. Não em pensamentos, não em lembranças, não na memória, quero-a em minha vida como centro do universo, como razão da existência. Queria a máquina do tempo, voltar meus passos, calar minhas palavras antes que fossem ditas, queria não ter sido fraco, não ter aproveitado o instante, não ter dado o passo errado quando estávamos na beira do abismo. Mas não tenho à disposição a máquina, nem tempo para reparar o erro maior da minha infantilidade instintiva animal. Queria voltar no tempo e ser outro homem quando deveria ter sido. Queria voltar no tempo e estancar o sangue vertido. Queria voltar no tempo e ter sido o bom marido. Mas não posso. E o que queria agora não passa de uma hipotética tentativa de justificar a forma como trato quem hoje me dá amor sem nada pedir. Cláudia não volta, assim como o passado. Luciana é o meu presente, mas não consigo pensar nela como futuro. Jamais imaginei que seria Luciana a mulher que me daria um filho, que me daria a continuação dos dias quando a terra me cobrir a matéria apodrecida. Amamos aquilo que não podemos ter. E eu tinha o que tanto amei, mas não dei valor ao que me alimentava a emoção quando ela se me estendia à frente, acalentando minha alucinação febril.

Não posso ficar aqui parado o dia inteiro. Acendo mais um cigarro, já é o quinto do dia, abro as janelas e ligo o motor. Estou de saída para o nada, para o escritório de paletó e gravata. E de pensar que me bastava a sunga e Cláudia para que a vida fosse a eterna primavera dentro do peito.

2 comentários: