quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Cena I - parte 1


Na escuridão silenciosa do quarto fechado, ergo-me da cama com cuidado. Ao meu lado ela ainda dorme entregue ao cansaço e aos sonhos da tranquilidade. A sua tranquilidade é oposta ao meu martírio, um contraste de agonias que me estremece e faz a cabeça pesar mais do que deveria na profusão agonizante dos meus pensamentos. Sento-me na cadeira e acendo o meu cigarro. Apenas o vermelho da ponta incandescente circula na escuridão como um vaga-lume de fogo. A primeira tragada me acalma a ten-são de aqui estar, no meu quarto, olhando para minha cama, vendo a minha mulher dormir como se o mundo fosse um lugar de serenidade, tão distante dos meus amargos pesadelos.

Seu corpo nu sobre a cama, o lençol beijando suas costas, o cabelo preto jogado de lado, a pele clara marcada pelos meus dedos alucinados, ela é ainda mais bonita no silêncio da madrugada. Da cadeira, tenho vontade de me lançar sobre ela e amá-la, devorar os seus desejos, arrancá-la da serenidade dos sonhos e possuí-la com ferocidade instintiva até calar o monstro que me toma quando olho para ela, dormindo, passiva, frágil ao meu dispor. Mas não o faço.

Luciana dorme, eu não. Queria poder calar a voz que grita em minha consciência perturbada por um amor sem cura, uma ferida aberta que teima em sangrar depois do sexo, depois do ardor da volúpia. Não digo que seja justo, mas não consigo apagar o rosto sorridente das minhas lembranças, não consigo amargar o gosto doce do beijo que me faz delirar como um louco à porta do céu.

Minha querida, olhar para teu corpo me estremece. Gosto de ti, minha querida amante, mas não posso deixar de amá-la. Gosto de ti, minha doce Luciana, mas não posso retirar de mim o perfume dela, posto que está tão empregado em meus poros, que, por mais que queira, ele não sai. Deveria pedir-te o perdão, mas não posso me arrepender dos pecados que não julgo ter cometido. Gosto de ti, mas não posso te amar.

Inclinas a cabeça devagar. Estás acordada. Teu corpo desenha uma curva belíssima diante dos meus olhos. Eu me remexo na cadeira, tu percebes na escuridão que não estou ao teu lado. Inspiras com força e sentes o cheiro forte da fumaça do cigarro. Resmungas, mas, como é do teu feitio, não dizes nada. Com a tua voz mansa me perguntas por que não me vou deitar contigo. Respondo que não tardo; que irei terminar o cigarro primeiro. Sabes o quanto gosto de fumar à noite, depois do sexo, o longo trago que me põe de volta ao mundo real. Sei que não gostas que eu fume no quarto, sei o quanto a fumaça te irritas, mas não posso ir à varanda como vim ao mundo. Gosto de te olhar enquanto fumo, explico sem te comover. Pedes para que eu volte aos lençóis, pedes para que eu volte ao seu corpo. Prometo-te que não tardo, mas sei que não voltarei agora. Não posso buscar os teus braços enquanto minha mente está presa nos olhos dela. Invento-te uma desculpa para que durmas à minha espera. Logo dormirás, estás tão sonolenta, que não vês que acendo outro cigarro e me perco de mim mesmo.

3 comentários:

  1. Sublimes - as suas palavras: a doçura que envolve o nosso corpo e a angústia que nos inquieta. Parabéns.

    ResponderExcluir
  2. Entrei já na estória... É normal que me venham lágrimas?

    ResponderExcluir
  3. É engraçado que quanto mais eu leio, mais eu quero ler!

    ResponderExcluir