quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Cena IV - Parte I

A vida segue, e a gente quase não nota o quão rápido ela atravessa os caminhos. Não, não sou infeliz; digo a mim mesma todas as manhãs diante do espelho, fitando meus olhos chorosos e as rugas que me vão surgindo no rosto. Acontece que tem dias em que acordo com as lembranças tão vivas na minha memória que tenho a infeliz impressão de que elas aconteceram há pouco tempo. Meu grande problema é que não consigo disfarçar meu rosto pensativo quando sou acometida pela doença que me pôs de cama por meses, quando sou acometida pelo delírio dos braços que malfadaram minha vida por longo sofrimento travestido de amor. Mas o amor não deveria doer, no entanto dói. O amor deveria ser felicidade, no entanto causa tristeza. O amor deveria ser fogo, no entanto gela na ausência. Pego-me pensando naquele poema de Camões que ele gostava tanto. Quero esquecer o poema para não ter que me lembrar do meu assassino da poesia. Sempre que me pego a declamar mentalmente o soneto Amor é fogo que arde sem se ver, sinto um desconforto me bulir por dentro, uma ânsia exasperada que me faz contorcer o corpo e devastar a mente por lembrar daqueles lábios articulando as palavras com lentidão lasciva, quase me fazendo estremecer; lembro dos olhos penetrantes em minha pele, deixando-me tonta e desatinada; da voz rouca que me arrepiava os pelos da nuca e fazia o meu estômago apertar. Isso me enoja. Um dia fora prazeroso ouvir os versos saírem daquela boca para me enlouquecer, mas hoje eles me dão nojo, asco, raiva. Sei que era melhor não significarem nada, mas não consigo ser blasé a quem me fez sair do meu eixo, perder a minha rota e mudar o meu destino.

Deixa disso, Cláudia. Eu não posso passar a vida pensando no que poderia ser. Há tantos “ses" como muitos “poréns”. O destino me pregou uma peça. Uma estúpida peça que não fez ninguém rir durante o espetáculo tragicômico que representa minha angústia ou quando desceram rapidamente as cortinas do teatro enquanto eu fazia a última cena do meu monólogo enfurecido. É preciso encarar a realidade como sempre fiz, sem olhar para trás, sem olhar para os males que durante tanto tempo trouxe comigo.

Minha vida é bela, não é perfeita, mas é bela. E não será um homem, seja ele quem for, o causador da minha moléstia. Água fria no rosto é um ótimo remédio para voltar ao mundo real, o mundo infinitivo, certo, aquele a que fui obrigada a viver sem as idealizações platônicas do sensível. Não há espaços para o sonho infantil da menina de vestido rosa conduzida pelo pai num baile de debutantes fora de época. Eu sou mais do que isso, muito mais do que uma estupidez sem sentido no tempo da liberdade feminina. Nada é mais estúpido do que sonhar com o tal príncipe encantado quando ele próprio nos mostra que o castelo é o brejo. O amor encanta, suga, deslumbra, detona, mas é só o amor, essa utopia que acreditamos fazer sentido quando não há mais sentido em nada.

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