segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Capítulo II - Cena I

Deixei Luciana em casa há poucos minutos. Às vezes tenho vontade de deixá-la para sempre, não voltar a entrar em casa, não voltar a entrar nela, mas não consigo. Não é porque não gosto dela, na verdade gosto tanto, que não posso suportar a forma fria como a trato. Infelizmente não sinto por ela o mesmo que sinto por ti, que marcaste minha vida como ferro em brasa ardendo no couro.

Não sou mais o homem que um dia fui. Eu mudei, mas a mudança se deu tarde demais para nós dois. Hoje sou um homem fiel, não mais me deleito em outros braços, não mais adormeço em outros seios. Bastam-me os seios dela para acolher minha cabeça cheia de delírios. É difícil de acreditar que um cafajeste se endireite, mas depois de te perder, obriguei-me a ser o homem que esperavas que eu fosse. Dirias que é tarde demais, eu te conheço o suficiente para saber que minhas palavras não fariam que me perdoasses, mesmo assim insisto em dizê-las para amenizar minhas crises internas, para que meu arrependimento não seja mortal, como foi no dia em que me deixaste por descobrires minhas falhas, por descobrires meus desenganos.


A quem quero enganar? Ninguém ouve meus pensamentos. Cláudia não passa de uma ilusão que me persegue, um fantasma que me assombra. Luciana é meu presente, mas não consigo amá-la da mesma forma que amei quem não dei o merecido valor quando poderia dar o mundo em troca de um simples sorriso. Deveria, portanto, tratar quem me ama da mesma forma como sou tratado, mas algo me impede. É esse fantasma que anda ao meu lado, é a lembrança que não consigo esquecer, é a saudade que me destroça, é Cláudia que me vem à cabeça sempre que fecho os olhos.

Meus cigarros acabaram. Preciso fumar, porque a nicotina me entorpece a loucura. Entro num bar qualquer e peço um maço de veneno enrolado. Olho as prateleiras e me sinto seduzido por uma garrafa de bebida barata. Quero pedir uma dose de qualquer coisa, algo que me faça esquecer a minha vida por alguns instantes. Quase peço ao atendente uma pequena dose apenas para sentir o gosto ardente do álcool em minha boca para me fazer esquecer o gosto da boca de Cláudia, mas ainda não é hora de beber, ainda não é hora de deixar a cabeça tombar no balcão e a mente sair do lugar. Não regressarei meus dias para o momento em que busquei na bebida um alívio às minhas dores, embora tenha Fernando Pessoa na cabeça: “Há doenças piores que as doenças”.

Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida.
Há tanta cousa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

“Dá-me mais vinho, porque a vida é nada”, repito ao fim do poema, em voz alta, causando espanto no bar. Peço desculpas, acendo o cigarro e volto à rua. Luciana me tirou do fundo do poço, não é justo comigo, nem com ela, descer novamente ao abismo em que minha vida vacilou.


Um comentário: