segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Capítulo II - Cena IV

O carro amarelo parou. Entro nele sem vontade. Se não estivesse a trocar as pernas, poderia muito bem sentar-me ao volante do meu. Mas além das pernas, também tenho os olhos cansados, olhos que me traem com imagens que não existem, tenho certeza de que não existem, são apenas mais um delírio provocado pela bebida. O álcool faz a dor parecer menor do que realmente é. O álcool me engana os sentidos e me faz esquecer o que sinto romper em mim. É meu amigo verdadeiro, meu fiel camarada para as horas mais impróprias. Não deveria ter bebido tanto, mas também não deveria ter visto o maldito cartaz em que Cláudia me encarava com seus olhos penetrantes e sensuais. Cláudia está viva e próxima, eu sou o fantasma; eu sou o que jaz no sepulcro das amarguras de que é feita a vida.

Logo estarei em casa. No conforto do meu quarto, no calor da minha cama. Logo estarei em paz, desde que Luciana não esteja esperando por mim. Luciana! Ela me odiará se me vir em tão maltrapilho estado. Coitada! Tanto fez para que eu largasse a bebida, tanto me encheu para que eu esvaziasse as garrafas, e eu estraguei seu trabalho de me libertar de mim mesmo. Como explicar que não tive culpa do meu delito? Como poderia dizer-lhe que me entorpeci porque Cláudia me apareceu na frente e o meu desejo foi de mergulhar na fotografia para amá-la como amei um dia?

Pago ao taxista pela corrida e saio do carro, ainda trocando as pernas. O porteiro imediatamente abre o portão ao me ver parado à frente do prédio, procurando o interfone que deveria ser facilmente tocado. Ele percebe, não é tolo, que estou fora das minhas condições normais. Abre-me o portão e a porta. Posso vê-lo segurando o elevador para que eu vá logo para meu andar. No caminho ouço-o dizer algo como: “Dia ruim?” e respondo-lhe: “Não o dia, mas a vida.” Vejo em seu rosto um sorriso de discórdia. Entro no elevador e olho para o lixo que eu represento no espelho. Tento sorrir, mas me dói o rosto tentar ser hipócrita para mim mesmo. Chego ao meu andar. Caminho sem pressa até a porta e espero. Não quero entrar.

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Ficou perfeito!
    Achei muito empolgante a leitura, prende a gente... legal...parabéns

    meu email pra contato: neidelazevedo@hotmail.com

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