sábado, 9 de outubro de 2010

Capítulo II - Cena II

Ele demora a voltar do trabalho, da rua, da vida. Eu estou tão cansada, cansada de tudo, de mim, dele, de nós dois. Estou tão cansada de ficar sozinha, mesmo quando ele está aqui. Fico imaginando por quais ruas ele passa, por quais esquinas se demora, por quais bares me esquece, por quais mulheres se enamora. Sofro do imaginar constan-te, de formular teorias angustiantes, de criar diálogos fascinantes, de dirigir beijos de cinema, de sofrer traições constantes. Jorge, meu amor, meu pecado, meu martírio. Co-mo pode um homem dominar uma mulher como ele me domina? Como posso me entre-gar a quem me repudia? A cabeça é um problema quando o coração padece. A mente cria armadilhas que o coração não entende, mas sente.

Tenho um livro nas mãos. É claro que é um livro dele, porque meus livros são tolos perto da grandiosidade das suas leituras. Eu me sinto superficial, vazia diante da imensa intelectualidade de Jorge. Jamais li um poema como ele, nunca conseguiria pôr o sentimento na entonação como ele faz. A sua voz é serena e apaixonada, tão carregada de emoção que chego a acreditar que é para mim o seu amor; que chego a acreditar que as articulações sibilantes são exclusivas para mim. Mas eu sei que há outra em sua ca-beça quando me diz as palavras de carinho que desenham sua boca. Eu sei que a paixão com que declama é pensando em outra. Pode pensar em outra, mas é comigo que ele se deita, sou eu que ele detém sob seu corpo, sou eu que o faço delirar e suar. Infelizmente, não me dou por satisfeita com o corpo, eu quero a mente, quero ser a única mulher em sua vida, quero ser a sua musa, quero ser o seu amor. É possível?

Estou sozinha. Voltei do trabalho, encontrei o apartamento mergulhado na escu-ridão. Fiz o jantar, pus a mesa e esperei. Esperei até os olhos pesarem e a cabeça doer. Quis dormir, mas a imaginação não deixa. Por isso estou com um livro na mão. Abro-o a esmo.

Me gustas cuando callas porque estás como ausente,
y me oyes desde lejos, y mi voz no te toca.
Parece que los ojos se te hubieran volado
y parece que un beso te cerrara la boca.
Como todas las cosas están llenas de mi alma
emerges de las cosas, llena del alma mía.
Mariposa de sueño, te pareces a mi alma,
y te pareces a la palabra melancolía.
Me gustas cuando callas y estás como distante.
Y estás como quejándote, mariposa en arrullo.
Y me oyes desde lejos, y mi voz no te alcanza:
déjame que me calle con el silencio tuyo.
Déjame que te hable también con tu silencio
claro como una lámpara, simple como un anillo.
Eres como la noche, callada y constelada.
Tu silencio es de estrella, tan lejano y sencillo.
Me gustas cuando callas porque estás como ausente.
Distante y dolorosa como si hubieras muerto.
Una palabra entonces, una sonrisa bastan.
Y estoy alegre, alegre de que no sea cierto.

Realmente, a leitura de Neruda é mais viva no original, Jorge já me havia dito is-so, mas nunca lhe dei importância, apesar de concordar com ele somente para agradá-lo. Hoje eu li com outros olhos, com outro sentimento. O som, a formação das palavras na boca, o bailar da língua é tão mais belo no espanhol, tão mais vivo, tão mais excitante. Não entendo tudo, mas o que consigo entender do poema me engrandece a paixão.

Sou tola de ficar aqui lendo poemas enquanto Jorge vaga pelas ruas numa busca desesperada pelo amor que eu não posso dar. Sei que sou tola por esperá-lo, se nem sei se ele vai voltar. Mas ele sempre volta, no fim, ele sempre volta para os meus braços, para minha vida. Não existe vida sem Jorge. Não existe mundo sem ele em mim.

2 comentários:

  1. Muuuito bom.
    Vou parar de enrolar e comprar logo seu livro.
    Me deu vontade de ler de verdade..
    Beijoss.
    Babi

    ResponderExcluir
  2. Não acredito que esqueci de pegar os livros que disse que tinha na sua casa. Pegue um que achas que vou gostar, faça a dedicatória e traz (com o valor do livro na frente para eu não esquecer). rs.
    Ah! Adorei a cena. Vou começar a ler do início agora. Beijo

    ResponderExcluir