sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Capítulo III - Cena I

Quando a conheci era aspirante a atriz de uma pequena companhia de teatro. Mas vi na sua interpretação apaixonada que ela iria longe nos palcos, voaria alto. E eu não conseguiria acompanhá-la. Eu jamais alcançaria o brilhantismo de Cláudia em meus textos, jamais conseguiria compor uma peça a sua altura magnânima. E por tanto admirá-la, quis fugir do seu fascínio. Cláudia, antes, era encantadora; hoje, vejo-a consagrada. Queria ter coragem de entrar no Municipal, sentar na primeira fila e contemplá-la em seu brilhantismo sublime, mas não posso fazê-lo. Qual seria minha reação ao vê-la novamente? Eu choraria como um tolo arrependido a me jogar sobre seus pés pequeninos? Eu gritaria ao mundo o amor que deixei escapar pelos meus dedos? Eu pediria perdão por ter sido o homem que a abandonou quando ela mais precisava de mim? O mais provável é que minhas pernas tremessem e eu fugisse como louco pelas ruas a me odiar cada vez mais. Não vou ao teatro, não vou vê-la. Quero guardar comigo as imagens belas que compusemos juntos, as paisagens bucólicas que fingíamos viver. Não quero encerrar um sonho bom quando ele é tudo o que me resta. Tento esquecer Cláudia, embora saiba que é impossível esquecê-la. Mas me forço para fazê-lo.

Vou ao aparelho de som. Reviro os discos, procuro algo que me acalme e também intensifique o que sinto. Não sei o que ouvir ao certo, mas gostava de ouvir alguma música que me levasse de volta à minha terra distante. Sou assombrado por fantasmas do meu passado e também do meu presente. Demoro-me no Abrunhosa. É perfeito para o meu penar, é perfeito para evocar as aparições da minha memória. A música começa, os primeiros acordes do piano, as primeiras lágrimas a escorrem pelo rosto aflito, tristonho.

Aquele era o tempo
Em que as mãos se fechavam
E nas noites brilhantes as palavras voavam,
E eu via que o céu me nascia dos dedos
E a Ursa Maior eram ferros acesos.
Marinheiros perdidos em portos distantes,
Em bares escondidos,
Em sonhos gigantes.
E a cidade vazia,
Da cor do asfalto,
E alguém me pedia que cantasse mais alto.

Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
Quem me diz onde é a estrada?
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
E me diz onde é a estrada

Aquele era o tempo
Em que as sombras se abriam,
Em que homens negavam
O que outros erguiam.
E eu bebia da vida em goles pequenos,
Tropeçava no riso, abraçava venenos.
De costas voltadas não se vê o futuro
Nem o rumo da bala
Nem a falha no muro.
E alguém me gritava
Com voz de profeta
Que o caminho se faz
Entre o alvo e a seta.

Quem leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
Quem me diz onde é a estrada?
Quem leva os meus fantasmas?
Quem leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
E me diz onde e a estrada

De que serve ter o mapa
Se o fim está traçado,
De que serve a terra à vista
Se o barco está parado,
De que serve ter a chave
Se a porta está aberta,
De que servem as palavras
Se a casa está deserta?

Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
Quem me diz onde é a estrada?
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
E me diz onde é a estrada

***
Quem me leva os meus fantasmas - Pedro Abrunhosa; Luz, 2007

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