quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Capítulo III - Cena II

Choro no escuro. Choro na solidão que me imponho como castigo aos meus males. Tudo é triste, porque não consigo encontrar mais a alegria que um dia tive em mim. O amor me deixou. Ou fui eu que o deixei ir? Quero o regresso a Lisboa, à minha terra triste e tão distante de mim. Podia voltar, podia embarcar no primeiro voo pela manhã e estar novamente nas ruas da minha cidade. Podia recomeçar de onde pensei ser o fim, podia abandonar este Brasil em brasas e resfriar o corpo no frio intenso da solidão lusitana. Mas não, não posso deixar para trás a vida que aqui tracei. Não posso enterrar mais mortos pelo meu caminho sem direção. Sinto falta do Rossio, dos gajos apressados, das raparigas enamoradas, sinto falta das minhas raízes arrancadas, porque já não tenho raízes, já não tenho lugar. Portugal é apenas uma saudosa lembrança desde que cruzei “o mar salgado” para me encontrar e me perder por cá. Faz tantos anos que parti, que disse adeus para minha irmã, que abracei minha mãe, que enterrei meu pai. Faz tanto tempo que Portugal já não é meu como eu também não sou de Portugal. Até meu sotaque se vai embora, desbota. Quase falo como os brasileiros, tenho consumido sua cultura multicolorida, tenho me apaixonado pela música, pelo teatro, pela literatura, pela mulher que nunca cruzei em Lisboa, Oeiras, Cascais, Sintra... mas vim a encontrar no Rio de Janeiro, na correria desenfreada dos passos apressados que sempre tem tempo para o banho de mar. Foi aqui que conheci Cláudia, foi aqui que amei Cláudia, foi aqui que perdi Cláudia. Quero voltar a Portugal, mas...

Se eu fosse um dia o teu olhar,

E tu as minhas mãos também,
se eu fosse um dia o respirar

E tu perfume de ninguém.
Se eu fosse um dia o teu olhar,
E tu as minhas mãos também,
se eu fosse um dia o respirar
E tu perfume de ninguém.

Não há mais o que me dizer. Só restam as lágrimas atravessando a noite. O cigarro me acompanha a loucura, valsando solitária pelo ar das minhas alucinações. Ainda estou bêbado, porque a cabeça gira num vendaval assustador. Torno a me sentar. Estou tonto, estou cansado, estou desesperado pela paz que me falta. Encolho-me na poltrona como se ela fosse a velha mãe a me acolher. O sono chega com força colossal a pesar as minhas pálpebras para baixo. Caem as cortinas do meu espetáculo, a cena tem o seu fim próximo.

***
Se eu fosse um dia o teu olhar, Pedro Abrunhosa - Palco, 2003

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